Traição

Estava como de forma habitual, com seu cachimbo e seu livro de filosofia. Já era tarde da noite. Gostava do silêncio de sua casa. Os vizinhos o achavam muito comedido, mas a verdade é que esse comedimento tinha um preço. A verdade do mundo pode aparecer em tom rouco ou quase silenciado, mas sempre aparece nos gestos, nas palavras, no olhar. Teria acabado de chegar da análise. A psicanalista lhe teria dito que tinha uma tendência a agradar os outros. Preferiu não questionar para não gerar contendas. Seu espírito tendia à inércia e a apagar tudo que ameaçasse seu senso de segurança.

Distante e longe de todos, refugiava-se em sua poltrona. Ali se deleitava como podia. Tinha tido um caso recente, mas o rapaz o deixou por precisar viajar para cuidar de familiares. Sempre que possível lhe telefonava para saber como estava. Sua família vinha lhe visitar muito esporadicamente. Quando vinham, preparava um almoço especial com frango a passarinho. A sobremesa era bolo de chocolate que ficava por conta de sua irmã mais nova. Lembrava com certo pesar de cenas e conflitos familiares, mas mantinha um sorriso feliz.

De repente, o som de uma batida à porta rompeu aquele silêncio propício a seus devaneios intimistas. Quando se colocou a imaginar quem era, o som se repetiu. Parecia impaciente. O intervalo entre as batidas diminuía com o passar dos segundos. Será que alguém descobriu o que havia encontrado em sua última viagem? Os manuscritos poderiam mudar o rumo da literatura e da psicanálise. A única pessoa com quem havia comentado sobre os achados foi sua psicanalista. Como de costume, reagiu sem efusões. Talvez tenha pensado que era apenas um de suas fantasias rotineiras.

A porta tremia e uma voz dizia querer os manuscritos. Seu corpo foi tomado por uma angústia. Ficou aflito. Decidiu pegar os manuscritos e colocá-lo sobre o braço. A porta continuava tremendo. Desceu pelas portas do fundo.

Correu. Correu. Correu.

Estava ofegante e com medo. Não sabia para onde estava indo. Apenas corria. Não sabia porque havia saído correndo. Sentia-se perseguido. As poucas pessoas nas ruas o olhavam e ficavam sem saber o que podia estar acontecendo. Desesperado resolveu parar em uma rua deserta. Estava escura. Sentou sobre o chão com os manuscritos. Pôs-se a chorar. Que preço pagaria por seus achados?

Como alguém poderia saber dos manuscritos?, pensou. Teria encontrado uma nova tragédia de Sófocles. Não tinha certeza, mas os dois semestres de grego na universidade lhe permitiam supor que o texto contava a história de uma traição. Quem seria o traidor? Teria Laio traído Jocasta antes de ser morto? O complexo já não seria o mesmo, seria um balde de água fria no nome do pai e em toda aquela baboseira. Onde entraria a amante em toda essa história? O jovem que matou seu pai também se apaixonaria por ela? Também teria um filho com ela? Se cegaria por duas vezes?

Tudo parecia confuso e não sabia o que poderia acontecer dali em diante. Não sabia se devia traduzir e apresentar ao mundo ou se poderia ele mesmo assumir a autoria do texto. Qual seria o menor dos males? Como se não bastasse Antígona ter saído da tumba, agora essa? Resolveu publicar ele mesmo a peça com um pseudônimo. O nome da peça era “A traição”. Nenhum sucesso. Não vendeu um livro sequer. O mundo não estava preparado para saber das traições.

Marcos de Jesus Oliveira
Enviado por Marcos de Jesus Oliveira em 22/01/2019
Reeditado em 23/01/2019
Código do texto: T6557040
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