Segunda-feira é um dia perfeito para pensar sobre isso.

“Todos os seres são infelizes; mas quantos o sabem?”

Cioran

Uma lua grande, amarela e indiferente iluminava a bunda de Carol. Eles transavam sob a luz da lua. Letícia e eu nos agarrávamos no banco traseiro do Gol quadrado. Marcos gritou lá de fora que vinha vindo alguém na estrada. Saímos ajeitando nossas roupas e cabelos enquanto os dois entravam nus no banco de trás. O Jeep Cherokee passou lentamente por nós. Dois minutos depois a lua grande, amarela e indiferente iluminava a bunda de Letícia.

Roger era o dono do Cherokee. Casado. Cinquentão. Nosso encarregado no Abatedouro, mas não nosso amigo. Às segundas chegava cedo, barbeado, com um impecável uniforme branco. Dava ordens e saía para o escritório dos patrões. Monitorava o trabalho por câmeras e só aparecia no setor de produção para dar broncas. Marcos, eu, Letícia e Carol éramos sempre os contemplados, pois éramos recém-contratados.

Chegávamos de manhã ao pátio e antes de ir para os alojamentos nós víamos Roger chegar. As meninas até gostavam dele. Marcos e eu percebemos logo que ele não era como a gente. Chegávamos felizes e saíamos cansados e tristes ao fim do dia. Ele saía assoviando baixinho e com uma cara de felicidade. Nós ficávamos encostados no carro vendo o pôr-do-sol e esperando as garotas se aprontarem.

O nosso problema com Roger é que ele sempre nos fazia lembrar do abatedouro. Nos lembrava que éramos pobres e que cada um de nós tinha de trabalhar, no mínimo, oito horas por dia entre carnes, gorduras, ossos e couro, se quiséssemos viver soltos e livres aos domingos. Roger era como um despertador sobre um criado-mudo: um incômodo. Marcos e eu, mais que todos, não gostávamos nem um pouco dele. Às vezes, me perguntava se era por ser nosso encarregado ou por ter um carro melhor que o nosso.

Aos domingos fugia dessas preocupações, rodando com Marcos, procurando um lugar para levar as garotas. Por isso, convenci a Letícia a ir conosco ao pesqueiro. Aquilo lá é um paraíso, eu disse a ela. Árvores, pássaros e peixinhos velozes que nadam nos canais. Tudo é lindo, Lê! Lá não enxergamos nem as chaminés do Matadouro. Ela disse sim com uma ruidosa gargalhada.

O pesqueiro fica a dez quilômetros do centro. É ideal para os jovens namorados e para os amantes. Aqui cabem Carol, Marcos, Letícia e eu. Gosto da calmaria do ambiente, da discrição dos empregados e da sensação de paz. Pois eu queria a paz, sem ter que morrer para isso. Eu já matava demais durante a semana. Meus amigos gostam de qualquer ambiente onde se possa beber, rir e fumar, nessa ordem. Para eles - penso eu - a paz assim como a guerra, são apenas palavra e palavrão, respectivamente.

Sentamos à sombra de uma goiabeira enquanto Letícia fisgava um peixão. Ele foi cair bem em cima dos pés de Carol que, num gesto de susto, o empurrou para o tanque. Depois disso, as duas se divertiam bastante. Fisgavam e chutavam os coitados para o tanque de águas barrosas. Nós estávamos filmando as garotas se divertindo até que chegou o fiscal e falou que havia multa para quem fisgasse e soltasse os peixes. Saímos para um quiosque, próximo da entrada, cujas paredes de madeira envelhecida eram cobertas de samambaias e orquídeas.

Meia hora mais tarde Marcos e eu tomávamos a oitava cerveja quando as meninas chegavam do banheiro. Elas tinham os rostos limpos e cheiravam a perfume. Nós estávamos felizes. Inclusive estávamos felizes conosco mesmos. Mas, de repente tudo mudou...

O Jeep parou abruptamente. Uma poeira fina espraiou-se no local. A porta foi aberta. Ele descia. Primeiro vimos um pé que parecia tatear a grama do estacionamento a procura de terra firme. Em seguida vimos o outro pé, ambos manchados de vômito e titubeantes como se pisasse em areia movediça. Assim que o grande corpo saiu do carro, cambaleou em direção aos degraus. Marcos e eu trocamos esperançosos olhares. As garotas contornavam os lábios e sobrancelhas com seus polegares e indicadores. Todos ficamos em silêncio e esperando que o próximo passo fosse dado no vazio. O garçom, alheio aos nossos anseios, o amparou e o conduziu para um reservado.

Fingi indiferença e passei a contemplar os olhos castanhos de Letícia e sua boca vermelha que prenunciava prazeres. Carol puxava a cabeça de Marcos para que ele sentisse o cheiro do perfume que exalava do seu busto. Sorrio para eles, dou a volta à mesa e beijo a ponta do nariz de Letícia. Encosto-me à parede e espero que ela venha, mas ela não vem. Está entretida com o celular. Dou de ombros, sento ao lado de Carol e Marcos, de frente para Letícia. Marcos está começando a cochilar com os cotovelos enterrados na mesa de madeira. Levanto-me, incomodado.

Fico caminhando, passe-passando ao redor da mesa e dos amigos. Um homem tem o direito de acabar com a felicidade do outro? Quase perguntei para eles. No entanto, eu já sabia a resposta deles. Relaxa cara - hoje é domingo - eles me diriam, se pudessem falar alguma coisa mais, além da gagueira alcoólica dele e o arquear de sobrancelhas delas.

Deslizando os dedos pela madeira rústica da parede saio para fumar. Era comecinho de noite e os sapos coaxavam e, provavelmente, faziam sapinhos no brejo a cinquenta metros do pesqueiro. Ainda fumando e coçando o saco dou a volta no quiosque, cruzo o salão principal e dirijo-me aleatoriamente para a área dos fundos do estabelecimento. Recostei-me em um velho ingazeiro com o tronco ainda quente dos últimos raios de sol. Foi quando ouvi o garçom dizer:

-Não se preocupe seu Roger! Eu levo o senhor embora.

Afastei-me sem fazer barulho. Joguei a bituca fora. Olhei para o pasto adiante, para o salão com os últimos clientes. Andei até o quiosque e olhei lá para dentro. Marcos mal levantava um copo de cerveja. As duas garotas sorriam e tiravam selfies. Eu entrei, sentei na mesa com os pés no banco e tomei o resto que sobrou da garrafa. Com as mãos espalmadas sobre a mesa fiquei pensando que o domingo tinha acabado. Pelo menos para mim.

Estava com a cabeça quente. Sentia as orelhas arderem. Fiquei cabisbaixo. Levei um susto quando a boca gelada de Letícia cobria minha orelha de ponta a ponta. Ela disse que ia se maquiar para irmos embora. Saíram as duas nos deixando aflitos entre latas de cerveja com marcas de batom e os ponteiros alucinados dos nossos relógios trazendo a segunda-feira e o trabalho para bem perto de nós.

Não considerava meu trabalho um desprazer, era apenas necessário. Não sei o que significava para Letícia, Carol e Marcos. Foi através do meu trabalho que conheci eles. Enquanto tivesse emprego eu teria as três coisas que mais gosto: amigos, sexo e cerveja. Quanto aos patrões, gerentes, encarregados, fiscais, supervisores, essa corja toda era como a ressaca, após a bebedeira: um mal necessário.

É assim que eu vejo Roger: um filme de terror que optamos por assistir. Tenho calafrios e também conforto quando assisto a um bom filme de terror, não pelo medo em si, mas pelo alívio que vem após o medo. O encarregado era isso pra mim. Não fiquei feliz em vê-lo, nem bêbado, nem sóbrio. Pelo visto ele também não estava feliz.

Se algum dia eu descobrisse o que o deixa infeliz isso me deixaria mais ou menos contente? No momento não sei e não posso responder a essa questão. Estou muito ocupado beijando Letícia que chegou perfumada. Seguro Marcos por um braço, Carol o segura pelo outro. Letícia vai na frente balançando as chaves do velho Gol. Vou dois passos atrás com o cartão de débito numa das mãos e uma ideia na cabeça: segunda-feira é um dia perfeito para pensar sobre isso.

make
Enviado por make em 20/01/2019
Reeditado em 20/01/2019
Código do texto: T6555350
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