Eternamente Abandonado

Um amigo contou-me a história de G.C., quem se queixava de haver sido sempre abandonado pelas pessoas com as quais conviveu mais de perto ao longo de sua triste existência.

O primeiro caso de abandono ocorreu com Laura, menina de olhar e sorriso sedutores, na plena graça de seus doze anos, entre a infância e a adolescência, como era então comum nos anos sessenta (quando a própria cidade do Rio de Janeiro também parecia eternamente linda e adolescente, mas este último comentário já é nostalgia minha, não faz parte da história).

GC ficou apaixonado por Laura, sonhava com seus olhos azuis, seus cabelos louros e ondulados e seu sorriso cativante. Queria estar todo o tempo com ela, na escola, no cinema, na praça e em qualquer outro lugar. Certa vez, foi surpreendido pela mãe da menina no quarto dela em mau momento: molhado de pingar, temeu que seu estado de embriaguez amorosa fosse percebido e levasse ao fim do namoro. Tal não ocorreu, porém, para sua felicidade, ainda que tristemente momentânea.

Tempos depois, ele acompanhava Laura no ônibus a caminho do cinema, quando o pior aconteceu. Em certo momento, a menina pareceu ter visto alguém na rua e saltou apressada, abandonando GC no banco sem mesmo se despedir. Viu-a abraçar e beijar um menino que nunca tinha visto antes. Tão aturdido ficou que se deixou permanecer o resto da viagem no lugar onde estava, com os pensamentos girando, sem nada mais ver, até o ponto final, quando o motorista do ônibus certamente percebeu seu estado de abandono, compadeceu-se dele e estendeu-lhe a mão da amizade.

O convívio com o motorista, que se chamava Marcos, durou bom tempo. Era um tipo de mais idade, simples, de bom coração, que contava casos interessantes, divertidos ou dramáticos, os quais serviam para amenizar o infortúnio do amante abandonado por sua amada. Nunca mais foi procurado por Laura, nem ouviu falar dela. A iniciativa de buscá-la e procurar reacomodar as coisas passava por sua cabeça com freqüência e intensidade que foram decrescendo até que renunciou de vez a fazê-lo.

Para sua sorte, seu novo amigo morava em Bonsucesso, bem distante do bairro onde vivia Laura, o que diminuía, em certa medida, as recordações dolorosas. O tempo foi passando, mas, antes que GC pudesse pensar mais seriamente em namorar uma das filhas de Marcos, notou que o motorista deu para beber de modo freqüente. Não soube o porquê e viu, poucos meses depois, que a preocupação que lhe causava essa mudança no comportamento de Marcos tinha toda razão de ser. O amigo perdeu o emprego, ia cada vez mais aos bares e, finalmente, em uma noite melancólica, deixou-o à mesa sem nada dizer e retirou-se para sempre de sua vida.

A exemplo da primeira vez em que fora abandonado, outra amizade surgiu para GC imediatamente. Luís Carlos, jovem atlético e com um sorriso fácil, aproximou-se da mesa e levou-o consigo, apresentando-o a outros conhecidos e mostrando que era ainda melhor de papo do que o ex-motorista. GC gostou bastante do novo amigo, a quem logo passou a chamar de Luca, assim como notou que fazia o resto da turma.

Foi um período de grandes atividades, com toda certeza a fase mais divertida vivida pela autodenominada vítima de sofridos abandonos. Luca era assíduo freqüentador das praias de Ipanema e da Barra da Tijuca, dos bares da Lapa, Largo do Machado e Leblon, das festas de fim-de-semana e dos estádios do Maracanã e das Laranjeiras, onde não perdia jogo do seu querido Fluminense Futebol Clube. GC nem gostava muito de futebol, na verdade, mas achava legal o convívio com a torcida, suas alegrias e desventuras. Como dizia o Luca, era uma fauna fantástica, verdadeira aula de sociologia. Seu amigo preparava-se, por sinal, para fazer o vestibular e queria ser sociólogo. Suas intensas atividades sociais, que deixavam pouquíssimo tempo para o estudo, faziam GC temer, contudo, pelo sucesso do amigo nas provas.

Na companhia de Luca, GC conheceu muitas meninas, mas não chegou a envolver-se com qualquer uma delas. Talvez ainda sentisse algum apego subconsciente a Laura que o retraísse de tentar novo relacionamento. Talvez receasse, tão simplesmente, sofrer nova desilusão amorosa. Pode ser também que hesitasse em competir com o amigo Luca, que parecia gostar e ser senhor de todas aquelas meninas. O fato é que preferiu adotar uma atitude de “low profile”, expressão muito usada por um certo Vinicius, que fazia parte do grupo, gostava de recorrer a termos em inglês ou em francês e não cansava de lembrar seus planos de vir a seguir a carreira diplomática.

Além do cuidado de não concorrer com seu melhor amigo na arena das conquistas femininas, outra preocupação de GC era com as ocasionais confusões em que Luca e outros membros da turma se envolviam nos estádios de futebol e nos bares. Numa noite, “fatídica” segundo ele, no bar do Pontes, Luca disputava a terceira ou quarta partida de sinuca quando a confusão se formou. O namorado de uma bela morena da mesa 4 veio tirar satisfação com Luca, que nitidamente jogava de olho na garota e não na bola 7, como manda o figurino. Os dois partiram para a briga, na qual se envolveram partidários de um lado e outro, apesar dos esforços da turma do deixa-disso, que antes jogava tranquilamente na mesa 1.

GC não teve outra saída que a de ajudar seu amigo Luca. Como fiel escudeiro, participou da troca de tapas e de tacadas, enquanto se arriscava a ser atingido pelas garrafas e latas de cerveja que voavam por todo o salão. No auge da batalha, foi separado de Luca e arremessado com toda a força contra uma parede, caindo por trás da mesa 6, onde a bela morena procurava esconder-se. Completamente tonto e estirado em baixo da mesa, mal conseguiu perceber a chegada de alguns policiais, que ajudaram os garçons a conter os lutadores e levaram Luca e outros para a delegacia. Permaneceu deitado onde estava, sem forças para nada. Quando o salão já se havia esvaziado e fechado, um dos garçons o encontrou, ajudou-o a lavar-se e a recompor-se, retirando-o do recinto.

Depois do incidente, Luca nunca mais o procurou, desaparecendo de sua vida. A partir de então, para encurtar a história, foi uma sucessão de novos conhecidos com quem o convívio teve sempre o mesmo desfecho, com o pobre GC abandonado ao final. Já idoso, as últimas experiências, invariavelmente dolorosas, foram com uma bibliotecária e, a seguir, com um chapeleiro. A senhora levava GC quase todo santo dia à simpática Biblioteca Municipal, onde lhe agradava passar as horas em meio aos livros, mas às vezes ela o tratava bem e outras, nem tanto. Chegou, finalmente, o dia em que o deixou plantado em uma esquina do centro da cidade, acusando-o de velho e inútil.

O chapeleiro, que o encontrou naquele mesmo dia, quase de noite, apiedou-se do estado decadente de GC, cujas roupas se mostravam muito usadas e mesmo puídas, com pequenos orifícios que pareciam obra de traças. Providenciou-lhe melhor traje e procurou ajudá-lo a recuperar-se dos emperramentos típicos da idade. Com o passar do tempo, cansou-se, todavia, das continuadas mazelas de que padecia GC e, numa ida à Tijuca, veio a abandoná-lo na praça Saens Peña.

Carente de amigos (amores, nem falar!) e já sem um teto próprio, restou a GC refugiar-se em um terreno baldio, onde amargou os últimos dias de sua existência. Sua derradeira esperança, segundo o amigo que me narrou a história, era de que alguém ainda viesse a ter a compaixão de colocar em seu túmulo o seguinte epitáfio :

Aqui jaz o pobre

Guarda-Chuva

Eternamente abandonado

Traços e Troças (2015), ed. Lamparina Luminosa, S.Bernardo do Campo, SP