O Último Disparo

Em meio aos inúmeros zunidos provenientes dos intermináveis projéteis que eram disparados contra a terra, cavando-lhe sulcos violentamente, estavam Pedro e Moacir rastejando nesse solo que estava embebido pelo sangue de seus compatriotas e de seus inimigos. A poeira que se erguia velava, como seda sobre os olhos, os clarões provenientes das inúmeras explosões provocadas pelas pesadas balas dos canhões que estraçalhavam tudo que impediam suas trajetórias. A guerra não terminaria tão cedo, e ambos os soldados, pelejando aos arrastos, arcando seus pesados equipamentos, tinham que procurar abrigo imediatamente.

Foi quando um pesado projétil balístico, de grosso calibre abatedor de veículos de guerra, golpeou o solo e explodiu próximo de Moacir, cuja forte onda de choque golpeou-o e lançou-o alguns metros à frente, como se este fosse um frágil objeto de brinquedo arremessado por uma criança malcriada. O seu impacto com o solo e o forte zunido que lhe estourava os tímpanos, o deixaram atordoado e desnorteado. Ele se levantou aos tropeços e andava à revelia sem saber o que havia lhe atingido.

- MOACIR – gritou Pedro – CUIDADO.

Esse sinal de alerta de seu amigo o fez conduzir seu rosto em direção à um inimigo que lhe apontava o cano de sua escopeta em direção ao peito de Moacir. O perigo fez a adrenalina tomar conta de seu corpo, e Moacir, rapidamente, se agachou no mesmo instante que o seu inimigo puxava o gatilho. Por sorte, após o disparo, o projétil percorreu o vazio. Sem perder tempo, este pegou sua faca, e golpeou a barriga de seu adversário e, enquanto esse agonizava devido ao ferimento, desarmou-o e golpeou-o no rosto com sua própria escopeta, fazendo seu inimigo cair no chão atordoado. Porém, um gemido familiar chega aos ouvidos de Moacir, e ao seu virar, encontrou Pedro, alvejado em seu peito, cuspindo sangue, de joelhos mas já sem vida, antes de tombar no chão.

Num grito de desespero de negação àquela cena que ele acabara de presenciar, Moacir escolheu, ao invés de amparar seu falecido amigo, descarregar toda a munição da escopeta no seu inimigo que estava caído e desarmado, numa explosão de loucura e ódio que fervilhava em seu coração. O desespero foi tamanho que, num abrupto movimento, seguido de uma forte respiração ofegante, Moacir havia despertado.

Seu coração estava acelerado e ele transpirava terrivelmente. Olhava para sua mão e a percebia trêmula cronicamente. Ele não tardou em procurar uma capsula de um remédio calmante que ele sempre mantinha próximo de si, sobre a cômoda ao lado de sua cama. Sua mão foi tão abruptamente em direção ao remédio, que ele deixou o copo d’água cair no chão. Ele não se importou com isso, e ingeriu a capsula a seco.

Após uma profunda respiração, ele põe as mãos no rosto, no intuito de acalmar-se. Afinal, já era a sétima vez, em uma semana, que tivera o mesmo pesadelo. Não conseguia entender porque lhe via a mente, com tantos detalhes, algo que ele viverá a trinta anos atrás, na época da guerra, quando havia perdido seu amigo Pedro em combate. Ele tinha muitos transtornos psicológicos sim, mas a razão de Moacir ter se mudado para o campo era de, justamente, acalmar-se, ficando afastado do estresse natural do meio urbano, ajudando na melhora de seu quadro de saúde, segundo o conselho de seu médico, porém o efeito foi o contrário, pois quando vivia na sua antiga e pesada rotina de trabalho burocrático, ao qual ele prestava conta, não tinha tais pesadelos, tão marcantes, tão presentes.

- Isso não está funcionando – ele pensou, já avaliando como fraude todo o tratamento que ele estava se submetendo. Porém, ele sabia que não tinha outra escolha a não ser segui-lo, já que toda sua vida estava pesada demais e ele já não sabia como resolver esse problema – Dizem que passear no campo e respirar bons ares ajudam – ele pensou, então resolveu acatar a essa ideia que já estava postergando desde o primeiro dia que havia se mudado para o campo.

Ele se levantou, vestiu sua velha roupa de exército, e decidiu sair, sem pentear seus cabelos, muito menos fazer sua barba. Não dava importância a sua aparência. Considerava tais cuidados supérfluos.

Quando estava para sair de sua casa, algo ecoou em sua mente e o fez parar e virar para a parede. Lá estava um rifle que ele sempre o mantinha. Não podia deixar de leva-lo, já que seu rifle era seu protetor, seu único amigo. Foi assim que aprendera…

A medida que ele andava e ia adentrando-se na floresta, respirava o ar profundamente, sentindo o pesado gosto do mato em suas narinas, e isso não o acalmava, aliás, o deixava desconfortável. Já estivera antes no meio do mato, porém em condições totalmente diferentes. Os constantes sonhos da guerra o faziam lembrar das épocas que ele tinha que ficar entocado por toda a noite, atento para não ser abatido por um inimigo, e tal sensação vinha-lhe a mente ao invés de se desvanecer.

Então, repentinamente, ele escutou o barulho do mato se mexendo logo a sua frente. Isso o assustou e o fez entrar em estado de alerta. Um estado muito familiar que impregnava em todo seu corpo. Coração batendo forte, respiração acelerada… Com certeza alguém o estava perseguindo. Não tardou em apanhar seu rifle, puxar a alavanca para armar o ferrolho, apoiar a coronha sobre seu ombro direito, fechar o olho direito e abrir bem o esquerdo deixando-o reto em direção a mira da arma e apontar em direção à fonte do som que ouvira antes.

Ele ficou estático diante do silêncio fúnebre que se formava na clareira onde ele estava. Naquele momento, Moacir estava preparado para enfrentar quem quer que fosse vir lhe atacar. Quando ouviu, novamente, o som do mato se mexendo…

Um pesado estampido ecoou por toda a floresta, ao mesmo tempo que um grito de dor, muito semelhante à de um animal. Deveria ser um lobo, era o que Moacir pensava, que foi verificar logo em seguida.

Um frio na espinha subiu-lhe rapidamente quando percebeu que o que atingira, nada mais era do que um cachorro preto, que aparentava ter seus três anos, de altura mediana. Longe de ser uma ameaça. O coitado ainda estrebuchava, oriundo dos espasmos, já que estava sem vida.

Moacir cometera o mais grave dos erros. Eliminou um inocente. Não foi assim que aprendera…

- TIÃO!!! CADÊ VOCÊ!!! TIÃO! – gritava uma criança, um pouco distante dali. Moacir não tardou em perceber que seu ato havia ganho uma gravidade maior – TIÃO! Moço – o garoto perguntou para Moacir, ao vê-lo – Você viu um cachorro preto passar por… - então ele olhou para o lado de Moacir e reconheceu seu amigo canino falecido – TIÃO!!!! NÃO!!! MEU DEUS!! TIÃO!! ACORDA!!! – o garoto se debruçou sobre o cachorro desesperadamente, tentando acorda-lo chacoalhando-o. Moacir sabia que era inútil, pois seu tiro foi extremamente profissional, como aprendera…

- Garoto – disse Moacir envergonhado, na tentativa de acalentar o garoto, ajoelhando-se próximo a ele – Acalme-se, por favor.

- Como... como isso a-aconteceu...? – sofria o garoto, aos prantos. Nunca, em toda a vida de Moacir, ele sentira tanto medo de encarar algo como naquele momento, já que considerava mais fácil enfrentar a guerra do que expor uma atrocidade cometida por ele à uma criança. Mas era o certo a se fazer.

- Perdoe-me, garoto. Fui... – Moacir gaguejava – Fui eu que… que…

- Eu sei moço. Eu vi sua carabina – respondeu o garoto gravemente olhando no fundo dos olhos de Moacir, demonstrando sua mágoa para com ele, o que gelou o coração desse – Quero saber o por quê?

- Bem… eu… eu ouvi o mato se mexer e… pensei que fosse… um animal selvagem… - Moacir respondeu com dificuldades.

- Então você atirou porque ficou com medo – concluiu o garoto. Tais palavras pareciam como uma flecha penetrando o coração de Moacir, que ficou totalmente desconcertado, porém o garoto estava certo, e com toda a dificuldade do mundo, como se ele estivesse carregando uma tonelada nas costas, Moacir responde quase que aos grunhidos:

- Sim.

- Entendo – o garoto respondeu, olhando para o cachorro, enquanto fechava seus pequenos olhos para que descansasse em paz – Eu faria o mesmo se estivesse na mesma situação – repentinamente a voz do garoto já não era mais trêmula devido aos soluços da tristeza. A mesma já voltava a normalidade, o que chamou a atenção de Moacir – Já não era a primeira vez que o Tião fugiu de casa e se meteu na floresta. Uma hora ou outra ele ia se dar mal, se não fosse por você, poderia ser por um bicho do mato.

Mesmo impressionado por ver como o garoto havia se restabelecido tão rapidamente, Moacir continuou a se explicar:

- A culpa foi minha, garoto. Eu não devia sair atirando em tudo que estivesse na minha frente. Poderia tê-lo atingido ao invés do cachorro e eu não iria me perdoar por isso.

- Não se preocupa, moço. Minha vó dizia que o que aconteceu, aconteceu. Se não aconteceu, não tem porque sofrer. A vida segue e não podemos ficar parado feito mula empacada.

Aquelas palavras bateram fundo no coração de Moacir. Ele até tossiu, como se tivesse engasgado com algo. Naquele instante ele se perguntava como um garoto tão jovem poderia ter um conhecimento profundo como esse contido numa pequena frase? Além disso, como que esse mesmo garoto era capaz de se manter firme diante de uma situação tão grave e repentina que lhe ocorrerá… e ele não… durante toda uma vida? De alguma maneira, ele queria aprender…

- Tem pá, moço? – perguntou o garoto.

- O que? – perguntou Moacir.

- Pá. Para enterrar o Tião.

- Ah! Sim. Tenho. Tenho sim, lá em casa. Posso te emprestar.

- Sua casa está perto? – perguntou o garoto.

- Sim – Moacir respondeu.

- Acho melhor enterrar perto da sua casa, porque a minha está longe. Se você deixar, claro.

- Claro, claro – disse Moacir aos atropelos – Sem dúvida, eu te levo lá. Deixe-me levar seu cachorro. É o mínimo que posso fazer.

- Já que insiste, deixo sim. Ele é pesado.

Então Moacir segurou Tião em seus braços e o carregou até sua casa, conduzindo o garoto durante o caminho. Ao chegar lá, deixou o cachorro no chão, junto do garoto, e foi procurar, nos fundos de sua casa, pela pá. Lá estava uma bagunça, pois tinha quinquilharias diversas espalhadas por todos os lados. Nem parecia que estava lá menos de um mês. Demorou um pouco, mas ele encontrou a ferramenta. Quando chegou até o garoto, percebeu que o mesmo estava sem camisa, pois havia coberto o corpo de seu amigo canino com a mesma. Era uma forma de velar o corpo do cachorro.

Sem demora, Moacir começou a cavar um buraco, um metro por um metro, para servir de jazigo para Tião. Depois de terminar, o garoto aconchegou seu cachorro na terra e começou a recitar uma oração enquanto acariciava a testa de seu cachorro. Era uma oração simples, mas que era familiar para Moacir. Aquilo lhe fez pensar em sua infância…

Após terminar, o garoto começou a olhar para o ambiente e procurar incessantemente por algo.

- O que foi garoto? – perguntou Moacir estranhando sua inquietude.

- Ah! Achei! – exclamou o garoto, que correu em direção a um arbusto de ervas daninhas, retirando de seu meio uma pequena margarida branca, emaranhada por entre o mato, para surpresa de Moacir, pois não sabia que havia flores no seu quintal.

O garoto foi até a cova, cheirou a flor, olhou para Tião e disse:

- Adeus, amigão. Vá em paz. Ah! Se encontrar a vó, fala para ela que eu amo ela e que estou com saudades – então ele jogou a flor e com suas mãos, começou a jogar a terra para dentro do buraco. Moacir não tardou em ajudar com a pá. Em poucos instantes, Tião tivera um enterro digno.

Depois de um tempo de silêncio, Moacir perguntou ao garoto:

- Sua… avó. Ela faleceu?

- Sim senhor. Foi ela que me deu o Tião, esse cachorro levado. Gosto muito dela, sabe? Ela me ensinou muita coisa, inclusive a cuidar do meu amigão. Quando ela morreu foi muito difícil… Mas Tião estava lá para me fazer companhia. Ele era muito alegre e me tirou da tristeza, assim – o garoto estalou os dedos – Então, por tudo que minha vó me ensinou, eu nunca ia abandonar o Tião.

- Céus… - Moacir estava abalado, quase chorando, mas tentando se segurar para não expor seu desespero ao garoto. O menino percebeu sua reação, e logo respondeu:

- Não se preocupa não, moço. Tião sempre vai estar comigo. Essa foi a última coisa que minha vó me ensinou. Demorei um pouco para entender, mas hoje eu entendo. Tião vai estar sempre nas minhas orações, então nunca vou abandoná-lo.

Moacir estava catatônico. Era surpreendente demais tamanha convicção que aquele garoto tinha. As perdas não o abalavam, e isso o deixava incrédulo.

- Quem é você…? – ele murmurou espantado, imaginando se não estava diante de alguma estranha entidade.

- Eu? Sou Juca. E você? – o garoto perguntou.

- Ham? - Moacir se engasgou.

- Eu sou Juca. E você? – Juca tornou a perguntar.

- M… Moacir.

- Prazer, Moacir – então o garoto olhou nos arredores e percebeu o Sol se pondo, preocupando-se – Nossa. Está ficando tarde. Preciso voltar para casa.

- Onde… onde você mora… Juca? – perguntou Moacir, recompondo-se.

- Seguindo a estrada, depois da terceira travessa. Perto da capela.

- Eu posso te levar.

- Não se preocupa moço. Sozinho eu posso ir correndo e chegar logo. Meu pai deve estar preocupado. Até mais ver, viu?

Então o garoto saiu correndo estrada a fora. Moacir só ficou observando, atônito com tudo aquilo. A simplicidade e força que Juca mostrava o incomodava. Sua mente fervilhava devido a destoante questão que penetrava em sua mente. Como um garoto que tivera pesadas perdas tão cedo na vida conseguiu ter forças para seguir em frente e ele não? Tudo bem que Juca nunca vivera os horrores da guerra, porém, tão jovem, beirando os dez anos, já vivenciara a perda de dois entes queridos, que até então Moacir tivera conhecimento, e tais experiências o fortaleceram e não o contrário.

Então, muitas lembranças começaram a vir-lhe à tona. De seus pais, de seus avós, de seus amigos de infância e juventude, de seus companheiros de trabalho, seus companheiros de guerra, de Pedro…

… de Antônio, seu filho…

… de Elizabete, sua esposa…

Ele correu para dentro de casa e foi para um quartinho que ele fazia de depósito e lá havia, além de muitas coisas bagunçadas, um baú contendo vários álbuns de fotografias. Revirando-os, ele encontrou as fotos de sua esposa e de seu filho, ainda preto e branco, da época que ele ainda não havia sido convocado para a guerra.

- Como pude me esquecer disso… - ele se perguntava, já que sua família era a coisa que ele mais tinha amado na vida.

Ele revirou mais e mais, e encontrou fotos de sua família após a guerra. Não fazia sentido. Por que ele estava sozinho, então, em sua velhice, já que não lembra de ter enterrado nem sua esposa e nem seu filho?

Foi então que ele percebeu que algo o incomodava as costas, reparando que se tratava de seu rifle. Ao vê-lo, uma onda de lembranças vieram à tona em sua cabeça.

Os transtornos da guerra o deixara com traumas. Moacir sempre tinha em mente que estava em perigo e, mesmo depois de terminado os tempos de combate, ele sempre mantinha ao seu lado o seu rifle. Poderia haver inimigos a todo lado, ainda mais com as notícias no jornal mostrando que o caos ainda não havia se dissipado. Elizabete sempre brigava com ele por causa de deixar tão exposto a arma no ambiente de sua casa.

- Nosso filho pode acabar se machucando com ela! – ela gritava – Tire ela daqui, pelo amor de Deus!

Ele retrucava que era para a segurança de todos, que eles não sabiam o como o ser humano era cruel pois ele vivenciara isso na guerra. Tinham que estarem preparados para todo e qualquer perigo.

Porém, Moacir se lembrou do dia em que ele ouviu um estouro agudo, logo em seguida um choro. Ele correu e viu Antônio aos berros com sua testa ferida. Seu filho havia pego o rifle e acidentalmente apertou o gatilho. Por sorte o tiro havia pego de raspão. Moacir o havia levado para o hospital, onde foi tratado com todo zelo, porém Elizabete não o perdoou, e não tardou em se separar de Moacir.

Enquanto Moacir olhava para seu rifle, começou a entender quais foram os pontos de ruptura que o fizera ter uma velhice amargurada e vazia. Ele não queria viver novamente o terror e o desespero que tivera na guerra, e os dias que sucederam o término da mesma não foram amistosos. De tanto querer proteger quem ele amava, acabou, ele mesmo, provocando o terror que ele mesmo temia, onde a sorte poupou-o de mais sofrimento. Quase que inconscientemente, ele decidiu não querer mais se martirizar e, aos poucos, foi se afastando de tudo e de todos. Nunca mais havia visitado seu filho, sua ex-esposa, seus antigos amigos, seus pais, nem mesmo a família de Pedro.

Só não se afastava de seu rifle.

Ele revirou mais e mais arquivos, e encontrou uma foto, um tanto amassada, onde quem estava nela eram ele e Pedro fardados antes de partirem para o combate. Reconheceu o rifle na foto. Era o rifle de Pedro.

Então ele se lembrou que, no dia em que Pedro morreu, Moacir havia pego o rifle do amigo, como lembrança do mesmo, já que não conseguiria enterrá-lo em meio ao fogo cruzado. Essa memória o fez chorar fortemente. Moacir estava aos prantos, numa chuva de emoções que ele não sentia a anos. Era como se todos as angústias que ele havia represado, agora estavam sendo expressadas todas de uma vez.

- Desculpe… Pedro! Eu… Eu… - então ele olhou para o rifle, com os olhos marejados – Eu te… desonrei… - e ele chorava e chorava, angustiado pelo rumo infeliz que ele havia ditado a sua vida. Em meio a tanto sofrimento, uma lembrança ecoou, quase como uma voz aveludada, acalentando seu desespero, dizendo:

- Não se preocupa, moço. Minha vó dizia que o que aconteceu, aconteceu. Se não aconteceu, não tem porque sofrer. A vida segue e não podemos ficar parado feito mula empacada. Tião vai estar sempre nas minhas orações, então nunca vou abandoná-lo.

Era a voz de Juca em sua mente. Era como se ele estivesse ao seu lado, sussurrando aos ouvidos. Essa lembrança foi o suficiente para calar seu sofrimento, para fazer valer a voz da sua consciência. As simples frases que Juca havia dito o fez perceber que seu apego ao rifle era pelo medo de perder as lembranças de Pedro. Só que sua atitude fez o tiro sair pela culatra, e quase toda sua vida Moacir havia esquecido em decorrência dos fatos.

Mas todo aquele choque emocional o fez reaver as boas lembranças, os seus momentos felizes. Momentos esses que haviam construído seu caráter e seus sonhos. Ele queria uma família, queria ser pintor, ser construtor… E ele teve tudo isso… Tinha alguns quadros nesse quartinho, tinha seu diploma de engenheiro civil guardado numa pasta, tinha as fotos de sua família… e abriu mão disso por conta de seus traumas. Até mesmo no emprego, pois trabalhava num cargo administrativo da prefeitura de sua cidade, totalmente diferente de sua formação profissional.

Moacir enxugou as lágrimas e, de repente, começou a rir.

- Como pude perder tanto tempo na vida. Fui uma mula empacada – ele gargalhou. Toda aquela energia que ele tinha quando era jovem revigorou-o, pois ficou em evidência naquele momento. Ele largou o rifle no chão, se levantou e foi até o banheiro e se olhou no espelho – Como você está feio, hein Moacir – disse ele para seu reflexo. Decidiu, então, vestir uma roupa melhor e ir para o centro daquela cidade em busca de um barbeiro para aparar seu cabelo e sua barba.

Depois que Manoel fez o serviço em sua aparência, Moacir se olhou no espelho e se reconheceu, como se fosse ele mais jovem. Todo aquele excesso de pelo escondia quem, de fato, ele era, mascarando-o para os demais. Ele não era ranzinza, não era rancoroso, sempre foi alegre e cheio de vida, e isso estava voltando para dentro de si.

- Juca, Juca – ele falava consigo mesmo – Você não sabe o bem que me fez. Preciso te retribuir.

No dia seguinte, em torno das nove da manhã, ao chegar na terceira travessa, Moacir procurava alguma casa que pudesse ser familiar. Um morador que estava de passagem, percebeu que Moacir estava um tanto desorientado e perguntou:

- Está procurando algo, senhor?

- Conhece um garoto chamado Juca? Ele falou que mora por aqui.

- Ah, sim. É naquela casa amarela logo ali – ele apontou. Moacir agradeceu e foi em direção a esta.

- Oi senhor – disse Moacir a um homem que aparentava ter seu meio centenário.

- Pois não? – ele respondeu.

- Aqui é a casa de um garoto chamado Juca.

- Sim, é sim.

- Eu sou Moacir. Ontem eu conheci ele de um jeito não muito feliz.

- Ah! A história do Tião? – perguntou o homem

- Isso… essa mesma. Se o senhor permitir, queria falar com ele para entregar isso aqui de presente – Moacir mostrou para o homem.

- Entendi. JUCA! JUCA! VEM CÁ! O MOACIR QUER FALAR COM VOCÊ!

Saindo dos fundos da casa, vinha Juca correndo junto de outro garoto até a porteira.

- Oi Moacir, bom dia – disse Juca, cumprimentando-o.

- Bom dia Juca – Moacir correspondeu – Isso aqui é para você.

- Um cachorro?! – ele ficou surpreso.

- É… sei que Tião era único, mas sei também que você vai cuidar muito bem dele – e entregou nos braços de Juca um filhote de pelos lisos e malhado que não tardou em lamber o rosto de seu novo dono.

- Rá, rá, rá – Juca riu – Gostei de você, Toquinho. Obrigado Moacir, obrigado mesmo – o sorriso radiante de Juca foi como um sopro divino no coração de Moacir. Ele queria poder dizer o quão importante fora Juca em sua vida, como ele foi capaz de encontrar um rumo e a vontade de conquistar seus sonhos, mesmo na idade que estava. Mas Juca era um menino simples, e uma resposta simples bastava.

- De nada. Juca.

O garoto não tardou em ir com seu outro amigo brincar com Toquinho, e correram para onde estavam, nos fundos da casa.

- Ele gostou muito. Obrigado, seu Moacir. Não precisava – disse o homem.

- Precisava sim. Eu tinha que reparar esse erro. Era o mínimo.

- Então, já que o senhor está aqui, aproveite para tomar um café. A Cleide já deve tá terminando de arrumar a mesa. Ela faz um bolo que me faz andar nas nuvens.

- Não precisa se incomodar – disse Moacir sem jeito.

- É incomodo nenhum. Entra aí. Você já é de casa – disse o homem – CLEIDE! ESTÁ PRONTO O CAFÉ?!

- ESTÁ PRONTO SIM, JEREMIAS – gritou Cleide de dentro da casa.

Moacir não esperava por isso, mas, de certa forma, como ele havia se aberto novamente para a vida, ela estava lhe dando novas oportunidades para experimentá-la. Ele não queria mais a amargura, e sim a felicidade. Aceitar o convite era o primeiro passo.

- Obrigado senhor Jeremias. Vou tomar café com o senhor e sua família – ele disse.

- Entra aí, então, compadre.

Moacir possuía vários nós em sua vida, mas ele conseguia enxerga-los agora. Estava disposto a desatá-los um a um, e faria isso com alegria no coração. Veria Antônio, Elizabete, seus pais, amigos…, todos novamente… Iria arrumar sua casa, seu quintal, fazer um jardim e uma horta… Naquele momento ele conseguia entender que a Vida havia-o ensinado muito, e que agora, havia, finalmente, aprendido.