Um Encontro Memorial
Contos de Sil e Yel
“Suor, sangue e pobreza marcaram a história desta América Latina tão desarticulada e oprimida. Agora urge reajusta-la num monobloco intocável, capaz de fazê-la independente e feliz.” Oscar Niemayer
Quando Yel saiu de casa pensou que o tempo estava ao seu lado, algo que o próprio tempo fez questão de lembrar, não estar ao lado de ninguém. Na periferia transporte público já é complicado, aos finais de semana então, descaso é uma palavra que não comportaria o que o povo passa. Em nome do lucro diminuem a frota e aumentam o espaço entre as composições. Mas apesar da noção cruel da realidade, Yel não desistiu! Não poderia desistir, algo maior que ele mesmo o movia, era um desejo enorme alimentado pela vontade de vê-la. Fazia tempo que não a via, a vida tinha esta mania de dificultar os encontros, razão pela qual estremeceu da cabeça aos pés quando Sil ligou e disse que já estava no metrô Brás, ponto marcado para o encontro. Yel mal havia entrado no ônibus, mas disse já estava a caminho. Aquela pequena mexia com ele, não suportava a ideia de não vê-la. Se existe uma coisa capaz de mover uma pessoa ao impossível é ser acometido por uma forte paixão. Como dizem, um ser apaixonado faz loucuras. E Yel a amava tão loucamente que sempre diante de Sil colocara em dúvida sua capacidade de agir sobre a estigmática razão.
Yel estava atrasado, e pelo telefone Sil dizia que não iria espera-lo, pois havia um milhão se coisas para fazer. Sil sempre tinha em sua agenda um milhão de coisas a fazer, isto sempre o punha contra a parede num medo terrível de que não se vissem. Acometido de desespero pediu para que o ponto de encontro fosse transferido do metrô Brás para a Barra Funda, pois esta ficava a metade do caminho para os dois, mais próximo para os deveres de Sil e para acalmar a ansiedade de Yel, tendo em vista que o destino final de ambos seria depois o Terminal Vila Nova Cachoeirinha... Sil aceitou. Contudo, pôs Yel em um estado de tormento do outro lado, pois disse que estava passando mal, que iria comprar uma água e desligou. Yel se pôs a gladiadear contra o tempo, contra o ônibus, contra cada parada em cada ponto, contra os trabalhadores que embarcavam e desembarcavam, pois tudo contribuia para um mal maior, o mal estar o qual aflingia Sil e que Yel não tinha conhecimento do tamanho.
Cada ponto vencido, a cada segundo posto no passado sua ansiedade aumentava. Uma nova ligação. Era Sil. Acabara de chegar ao metrô Barra Funda, e Yel, preso no trânsito num corredor de ônibus, que assombrado pelo irônia, existia para que o transporte coletivo tivesse preferência na mobilidade urbana. Sil disse que iria sair e espera-lo do lado de fora do estação. Yel, em sua preocupação, conseguiu apenas perguntar se estava melhor e a resposta direta, curta, objetiva do sim seguido de um telefone mudo, o acalmara mas não sussegara a alma. Era precisa certeza. Certeza é a única coisa capaz de gerar segurança para que corpo e mente comunguem de um equilíbrio que gere sossego, e para que aja certeza, somente quando se está ao lado da pessoa que trás a preocupação. Quando chegou a estação de metrô da Barra Funda ligou para Sil que disse estar no memorial da América Latina. Yel apertou o passo, e suas passadas cada vez mais rápidas o pôs, contra sua prórpia vontade, à correr em direção da obra monumental de Niemeyer... Antes mesmo de entrar, através do gradil verde (um verdadeiro atentado a obra do arquiteto que tinha como intento a livre circulação de pessoas sobre as áreas comuns), a mais ou menos uns 500 metros de distância, pode vê-la. Estava linda! Sentada em um banco, com as pernas cruzadas sobre o assento, e algo entre as pernas que imaginava ser um livro pela posição em que se encotrava, um óculos escuro e o vento a acariciar seus cabelos claros como o sol e ondulados como o mar. Valera esperar só pela visão. Contudo, em sua mente se pôs a amaldiçoar aquele gradil, pois haveria de contorná-lo para chegar ao portão, duplicando assim a distância entre os dois. A visão, porém, tinha um quê de impressionismo e o tranquilizara. E, conforme se aproximava ganhava nitidez, passando de impresionismo a art nouveau, pois as linhas curvas de Sil se acentuavam e a elegância das roupas que compunham sua beleza também.
Sil estava tão linda à frente do monumento à América Latina de Niemeyer. Uma mão enorme aberta com sangue na palma que sugeria o desenho do mapa da América Latina surgido a partir da linha da vida e as veias abertas empossavam no chão. Parecia ser feita para as milhares de Sil's deste continente patriarcal, guerreiras que se irmanam com as tão sofridas historias latinamericanas. Sil usava uma camisa sem mangas floridas com cinco botões na frente, estava sem sutiã, típica do seu feminismo, aquele feminiso que vira e mexe enquadrava Yel por machismo. Mas se havia uma coisa que ele adorava nela era isto, seu feminismo! Dizia que era algo que o fazia melhor, que o punha em reflexão... Yel sentou-se no banco como se monta num cavalo para ficar de frente para Sil que estava sentada com as pernas cruzadas sobre o assento. Era lindo aprecia-la de tão perto, pensava. Sil estava com uma bermuda jeans curta e larga, as pernas desnudas em posição de lótus lhe causaram certo furor. Entre as pernas o livro Beauvoir e na boca um sorriso ao vê-lo sentar. Aquele sorriso lindo o acalmou, mais que isto, trouxe sossego a alma. O livro, um presente de um amigo em comum, que dizia Yel, ser o único homem capaz de trata-la bem, fora ele, é claro.