Contos das Terças-feiras – Alma Pura
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 1º de janeiro de 2019
Alma Pura fora batizada com esse nome porque um milagre a salvou de morte prematura. Sua mãe, 26 anos, grávida do primeiro filho, três anos de casada, vinha mantendo uma gravidez normal. Fazia todos os exames necessários com diagnósticos sempre confirmando normalidade. Embora hipertensa, controlava essa situação com remédios que não afetavam o desenvolvimento da criança.
Certa noite a mãe sonhou com sua bisavó, tida entre os amigos, conhecidos e familiares uma santa, uma senhora de alma pura, que morrera aos 103 anos de idade. No sonho ela dizia que a criança corria perigo de não nascer ou nascer morta. Seu conselho era para a bisneta procurar um cardiologista pediátrico o mais breve possível, logo pela manhã, e solicitasse um exame cardiológico da criança. Ela poderia ter problemas cardíacos durante o parto ou imediatamente ao nascer. A circulação no útero é diferente da circulação da criança fora da mãe, essa transição pode causar cardiopatia grave, de manifestação precoce.
Acordada e assustada telefonou para um amigo médico e solicitou indicação de um cardiologista pediátrico. Ela lhe falou o que sonhara contara. O amigo falou que era uma bobagem acreditar em sonho.
— Minha preocupação é que eu sonhei com minha bisavó, que fora parteira e salvara muitas crianças com suas previsões, disse a grávida.
— Comumente os sintomas das cardiopatias misturam-se sempre com outros sintomas de situações mais simples nas crianças, respondeu o médico.
— Mas eu estou deveras preocupada, retrucou ela.
— Certo, venha ao hospital. Aqui tem um cardiologista pediátrico, amigo meu. Vou falar com ele para ver você.
Às dez da manhã o médico amigo telefonou, pedindo que ela se dirigisse ao hospital e procurasse o Dr. Valdemar, que a atenderia. O exame foi feito e não ficou constatada nenhuma anomalia no coração da criança, que nasceria duas semanas depois. Na noite anterior ao parto, a grávida voltou a sonhar com a bisavó, implorando que a bisneta pedisse a presença do Dr. Valdemar na hora da parturição. A criança iria precisar dele ao nascer, só ele poderia salvar a sua trineta. No outro dia, já no hospital, uma linda menina veio ao mundo, estava perfeita, pesava 2,8 kg, 50 cm, frequência cardíaca normal, mas, de repente começou a ter problema na respiração, a criança se agitava toda, chamaram logo o Dr. Valdemar, que para atender ao pedido de um colega, apresentou-se ao hospital logo cedo.
A criança foi levada, às pressas, para a sala de cirurgia, antes tivera uma parada cardíaca que durou 15 minutos, até ser reanimada. Depois do procedimento cirúrgico, salva pelas mãos do Dr. Valdemar, Alma Pura foi levada para a sala de recuperação infantil. Cinco dias depois estava em casa. A mãe da criança não quis saber as causas que levou sua filha à mesa de cirurgia, queria esquecer tudo aquilo, embora a pediatra tivesse dito que iriam pesquisar a causa da não detecção do problema pelo aparelho de ultrassonografia.
Alma cresceu, aprendeu a ler com três anos, em livros de historinhas para criança e aos doze anos já lia livro de gente grande. A família morava próximo à uma biblioteca comunitária que a adolescente frequentava com assiduidade, pegava dois ou três livros, sentava-se no chão e se punha a lê-los sofregamente. Levava poucos minutos para devorá-los, o que assustava à bibliotecária de plantão. Em casa ela falava de temas os mais diversos possíveis, de assuntos desconhecidos para os pais, que ficavam boquiabertos enquanto ela falava.
Um dia pediu para visitar uma grande biblioteca, onde tivesse livros diferentes da biblioteca comunitária. Chegando lá, ficou longo tempo a olhar para aquelas prateleiras repletas de livros. Parou em uma sobre assuntos médicos, procurou um livro em especial, achou, pegou e sentou-se no chão para lê-lo. Ficou mais de duas horas lendo, sem parar e sem mudar de posição. O pai, assustado, foi duas vezes ter com ela, mas foi repelido, voltando para o seu local de observação.
Depois de ter lido todo o livro, ela procurou o pai, pediu-lhe papel e caneta, escreveu o nome do livro, a fileira em que ele se encontrava e os números de catalogação da biblioteca. Embaixo dessas informações escreveu: entregar ao Dr. Valdemar, do Hospital onde eu fui submetida à cirurgia do coração. Só ela, e o pai, é claro, poderiam ver o que ela acabara de escrever. O pai ficou surpreso, pois até aquela data ninguém havia falado com ela sobre o acontecido no seu nascimento.
Ela nunca vira o Dr. Valdemar, apenas a pediatra, cujas consultas pararam quando ela completou seis anos. O médico, ao ler o livro recomendado, passou a se interessar mais sobre o assunto. Tempos depois defendeu sua tese de doutorado relativo ao tema, que passou a ser procedimento recomendado; a presença de um cardiologista pediátrico durante partos, mesmo sem problemas aparentes. São os mistérios da vida.