Réveillon again

Véspera de mais um Réveillon. Casa da praia cheia, crianças chorando, cachorro latindo, areia pela casa, no piso do box e a família - quase inteira -, flanando por aí.

- Êpa, aquela eu não conheço.

- É a namorada do filho do vizinho.

- Ué, mas não era pra vir só a família?

- Sorria, acene e finja que ele é quase isso.

São malas e bolsas de viagem pelo chão, colchonetes enrolados em um canto, biquínis molhados atrás da geladeira e uma profusão de roupas para lavar se acumulando ao lado da máquina. Além da senha do wi-fi, ninguém mais sabe o quê é de quem.

Fizemos uma lista antecipada de mantimentos. Já não rola mais aquela coisa "do quem convida dá banquete". Os tempos são outros, mas sempre traz alguns marotos que misturam a cerveja quente (de origem duvidosa) com a minha prêmium geladinha que vai desaparecendo misteriosamente.

Como sempre as acomodações não agradam a todos, e uma briguinha ou outra tem o dever de  ser apaziguada antes dos festejos.

- Quem pegou a minha Canga?

- Alguém viu o meu biquini? Deixei na corda.

- Tem que levar alguma coisa para as crianças comerem.

- Não esqueçam o guarda sol e o filtro solar!

Ir à praia é quase uma novela. Nada cabe nos porta-malas lotados de coolers e dos restos da ceia de natal, embalados e fechados cuidadosa e hermeticamente em tupperwares remexidos pelas mãos mal lavadas dos cunhados.

Sair da garagem é outro desafio. A grama chorosa sofre pelo sol a pino e pelos pneus dos carros que dormiram ao relento. Um cortejo de gente espremida nos bancos, nos colos e na caçamba sai alegre e sorridente rumo ao paraíso, para mim, semelhante ao inferno. Não há vaga ou sombra para todos.

- Falta muito para chegar? Já é quase meio dia.

- Aumenta esse ar condicionado.

- Chega um pouco pra láaaa.

Enfim, chegamos à quinhentos metros do ponto desejado, munidos de baldinhos, cadeiras, coolers e guarda sóis. Ao todo são seis crianças  puxadas pelas mãos e outra pendurada no peito de sua mãe, que ignora estoicamente os olhares gulosos dos passantes e os desaprovadores da sogra.

- Que vergonha! Não se dá ao respeito. Coitado do corno do meu filho.

A senhora azeda é sabiamente ignorada, enquanto o grupo, que se assemelha a retirantes, segue suando obstinado em direção à areia escaldante.

Família é uma coisa bem engraçada, ainda mais os que vêm do interior, com a promessa de transformar nossas férias tão esperadas em um filme de terror. Entretanto, durante as horas em que fritamos ao sol lambuzados de Bepantol, doura pêlos e outros cremes suspeitos, usufruímos momentos de paz. Os sorrisos se tornam música, os jacarés enchem as sungas de areia provocando um espetáculo à parte. Chinelos viram oferenda à Iemanjá e como resposta divina ao roubo da minha cerveja premium, o cunhado gordo quase se afoga, mas nem o mar quis aquele traste.

Às duas da tarde o estômago começa a roncar. Os coolers estão quase vazios, proporcionalmente à alguns parentes que começam a cantar em voz alta, contar piadas sem graça ou demonstrar valentia com as ondas do mar.

Resolvemos abrir os potinhos, aqueles antes remexidos, e amargar com frustração seu interior azedo.

- Puta que o pariu. Sei que foi você Ernesto. Tem dedo seu nesse desastre.

No meio de toda família tem sempre aquele santo mais abastado que, sorrateiramente vai até o quiosque mais próximo e encomenda manjubinhas em quantidade suficiente para aplacar o prelúdio do apocalipse.

Enquanto acusações eram trocadas, eis que chega um garçom praiano, musculoso, tatuado e sorridente que, entre uma travessa e outra, troca olhares furtivos com nossas beldades adolescentes. À primeira travessa a discussão imediatamente para e ninguém se dá conta dos zaps trocados mediante o azeite, sal e limão sobre os peixinhos que iam rapidamente sendo devorados.

- Quem fez essa gentileza?

- Nossa! Isso sim é que é vida. Lá no Mato Grosso não vemos uma coisa assim tão bem servida.

Para felicidade geral, todos comeram de se fartar e o conteúdo dos potinhos azedos foram plantados em um buraco fundo na areia da praia. Totalmente ecológico.

As crianças sonolentas foram protegidas da friagem do fim da tarde. Pareciam sushis enroladinhos nas cangas. Os ventos de Netuno resolveram nos expulsar em boa hora, a maré estava subindo e tínhamos muita coisa para catar. Nem preciso contar como foi a volta. Nada do que veio cabia no mesmo lugar e o atrito da pele - antes suada -, dava lugar ao esfoliante da areia grudada, o sal e o óleo de bronzear.

Felizmente o cortejo voltou sem grandes contratempos. Apenas um dos carros não queria pegar, mas bastou uma chupeta para o bicho voltar funcionar.

A casa tinha duas suites e dois outros banheiros. As mulheres mais velhas ficaram em um dos quartos, no outro as mais jovens, os homens e as crianças foram distribuídos nos outros dois. Parecia que tudo correria bem, mas a lombeira não escolhia lugar e começou outra briga sobre a posse das redes penduradas em três árvores raquíticas, se comparadas ao peso que pretendiam à elas sujeitar.

As beldades adolescentes deram um perdido. Foram ao encontro do tatuado bronzeado. Coisa de doido ver os olhos do pai injetados, do tipo faca no dente e sangue nos olhos quando foi resgatar as duas. Deixa pra lá.

Por fim, lá para as dez da noite, as mulheres de pele ardida foram se revezando nos trabalhos para a produção do cachorro quente de praxe e a sala acolheu generosamente a todos para um filme da NETFLIX.

Cada um foi dormir no seu tempo e eu fiquei feliz em ver aquele bando de gente aglomerada num abraço afetuoso pelos cômodos da casa.

Hoje é dia trinta e um e os idosos começaram cedo. Uns foram andar de bicicleta, outros curar a ressaca na piscina, assistidos pelos bicho preguiça empoleirados nas redes, enquanto as bravas donas de casa preparavam as delícias da meia noite. Ninguém reclamou do macarrão com a salsicha que sobrou do cachorro quente, porque sabiam que mais tarde teria muita comida da boa, bolinho de bacalhau e o pudim da vovó. A criançada  almoçou e lanchou todo o sorvete da geladeira enquanto o pequenino continuava pendurado em sua mãe, num revezamento de tetas sem fim. Cidra foi separada para os mais novos, espuma de prata para os mais velhos e duas Chandon para os metidos a eruditos. Quando bateu às vinte horas disputamos os banheiros mais civilizadamente, não sem roubo de condicionadores, troca de perfumes e itens de boa sorte. Os macumbeiros deram uma corridinha na praia levando seus barquinhos, enquanto os ortodoxos preparavam a mesa da ceia e os fogos.

Parecíamos um arco-íris benfazejo. Estávamos de amarelo, vermelho, laranja, branco, ouro e prata, misturados aos rebeldes adolescentes vestidos de preto tirando selfies estranhas. Confusões, exorcismos e água benta à parte, entramos o ano armados de beijos molhados, abraços suados e olhos cheios de esperança, iluminados pelos fogos, cabelos chamuscados, barriga cheia e a felicidade por estarmos juntos outra vez, ressignificando os laços desse ecossistema esquisito chamado família, onde cada um tem a sua, mas muito pouco diferente da minha.

Feliz 2019

Fim

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Grata

 

Rose Paz
Enviado por Rose Paz em 28/12/2018
Reeditado em 21/05/2021
Código do texto: T6537550
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