Chegou o melhor dia do ano! O dia de ganhar presente com aquele cheirinho gostoso,  novinho, embrulhado com papel de colorido, brilhante e tão gostoso de tocar. São tão lindos  que tenho dó de rasgar, vou soltando o durex com cuidado, devagarinho.

Gosto de sentir o embrulho, tentar adivinhar como é a bonequinha, porque eu já sei que é  uma boneca, sempre é uma boneca. Umas são bonitas e outras nem tanto, com roupa de pano ou só de fralda, com sapato, meia e lacinho na cabeça. Meu sonho é ganhar uma boneca grande, com cabelo comprido para pentear. A tia  avisou que não pode pedir coisa cara, que ninguém tem dinheiro hoje em dia, e quem pedir brinquedo caro, não vai ganhar nada.

Sou a número cinco, de uma fila de sete irmãos da mesma mãe, minha avó fala que ninguém lá em casa tem pai certo. Isso quer dizer que meu pai pode ser qualquer um;  eu fico olhando os caras que andam com minha mãe, pra cima e pra baixo nos becos, tentando adivinhar. Não me acho parecida com nenhum deles, mas se pudesse escolher queria ser filha do motorista, só para andar de ônibus todo o tempo.

Vivo com a minha vó e seis irmãos no beco do rato, ela é meio cega e manca das pernas; sequelas do tempo que meu avô batia nela. Sou a quinta filha, a terceira menina, a mais bonita e a única que não repetiu de ano na escola. Minha avó é meio bruta, mas não é ruim, ela quase não bate na gente.  Quando ela fica nervosa pega uma tábua e todo mundo sai correndo pra rua, até ela ficar com sono e ir deitar. Então a gente volta e vai dormir sem janta.

Minha casa tem duas camas, os meninos dormem juntos e as meninas dividem com a avó. Não tem banheiro, a gente usa penico. Ela ronca muito alto e fica ainda pior quando bebe pinga ; minha mãe quase não aparece, ela vive toda machucada, descalça e com a cabeça raspada por causa dos piolhos. Ninguém diz que um dia ela foi bonita. Ninguém.
Cada vez que ela chegava  com um embrulho nos braços, minha avó gritava, chorava   e fazia um escândalo. Berrava que não ia tomar conta de mais uma criança,  mas ela sempre acabava ficando com pena. Aí era outra boca, e lá em casa não tem  nescau nem yogurt, só mingau de fubá que dá dor de barriga em todo mundo. Eu gosto de batata frita, de biscoito recheado, de churrasquinho e sacolé. Banho? Não pode esquentar água,  para não acabar com o gás.

Adoro o  Natal, para ganhar presente novo embrulhado em papel bonito; guardo todos os papéis para fazer coleção. Tenho muitos papéis que vou achando pelas ruas, mas tem que estar limpinho, senão a vó  diz que é lixo.
Eu ajudo minha avó a catar reciclagem, junto papelão, latinhas, vidro e metal. As vezes eu vejo minha mãe no portão do ferro velho, ela fica lá com os amigos vendendo coisas, mas ela nunca fala comigo. Minha avó diz que são craqueiros e que não me quer perto deles, que são gente ruim. Minha mãe um dia me pegou e levou pro sinal, as pessoas me davam moedinhas e eu dava para a minha mãe. Passei muita  fome, dormi na rua, na chuva e no sol. Até minha avó me achar e levar para casa.

Ganhei uma sandália cheirosa, de plástico e saltinho, branquinha com fivela dourada. Ganhei um vestido, uma escova de dente só pra mim com pasta pequenininha, sabonete, mas não ganhei xampu, minha irmã ganhou.
Esse ano teve cachorro quente, refrigerante, bolo e podia até repetir. Comi dois pedaços. Minha boneca não tinha cabelo, eu queria muito uma boneca com cabelo comprido para fazer penteado; minha avó berrou  que se eu não agradecesse direito, nunca mais ia ganhar nada. Agradeci e até dei um beijo na madrinha, pedi um pedaço de bolo para minha mãe. Queria muito que minha mãe viesse me ver no Natal, queria ganhar uma casa nova e levar todo mundo para morar nela.  
Papai Noel não existe, a tia disse que é a madrinha que compra o presente.  Meu nome é Alice e tenho sete anos.
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 26/12/2018
Reeditado em 26/12/2018
Código do texto: T6536183
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