QUIMERAS

Sentiu o efeito dramático da solidão.Tão dramático como o próprio medo da palavra.E no seu quarto, de luz acesa, sem suportar a escuridão era com os moveis a frieza das coisas que comprara.

Comprara um guarda-roupa em mogno, uma cama curta – porque a viuvez – impossibilitara-a da cama de casal.E a casa assim ganhava sombras pelas paredes, tanto na luz da noite como na claridade abusiva do dia.

Sentiu uma ansiedade da luz do dia, do ônibus lotado que a levava para a oficina de costura, até da maquina de costura, das horas comendo a fios leves até chegar a verdade que esperava.Esperava?

Chamou Débora, sua filha mais velha.Débora estava na praça do subúrbio, tão mal iluminado, com o seu namorado Adriano.

Débora era morena, de um moreno pouco atrevido; os cabelos escuros muito lisos.Débora vestia bermudas, saias tão justas, blusas com decotes, e sorria à toa para qualquer rapaz, mesmo que não fosse Adriano.Mas era só de Adriano o seu coração.Assim disse de madrugada quando chegou afinal de uma festa.

Chamou Lívia, sua filha mais nova.Lívia estava isolada em seu quarto contando os selos que colecionava ou fotos de cantores pop’s.Tinha uma alegria infantil e vazia, Lívia.Lívia estudava de manhã e a tarde fingia ocupar-se em arrumar seu quarto para estar na verdade sonhando.Lívia era quase loura como querubim; era como seu falecido pai.

E Berenice era uma viúva triste com seu monte de tralhas que comprava.Amava o cabelo de Lívia, claro como a camomila, e sem querer achava nas coisas mais difíceis a beleza e a semelhança.

Berenice amava sua varanda nos sábados, e no domingo sempre chegava junto ao portão, a cerca, onde havia rosas vermelhas plantadas.Era Lívia que, durante a semana, lembrava de colher algumas, colocar num jarro com água no centro da mesa da sala.Tinham uma mesa na sala, uma mesa na cozinha.Eram ricas de tantas coisas que nem tanto precisavam, e a casa ocupava-se de sombras, e acabava tendo sombra até onde se alojava penumbra, e as cortinas quase transparentes se arrastavam...

Berenice às vezes, num domingo que chovia, lembrava no meio da sala com as mãos enfiadas no bolso do avental:

-Sabe que eu tenho saudade do tempo que se usava cristaleira.

Débora é que ria, procurando ligar o som na estante:

-Que coisa mais cafona mãe.

Lívia ocupava-se carinhosa com as flores vermelhas no jarro, assoviando uma canção que nada tinha haver com a que Débora colocara no som.Lívia era como uma bolha de sabão.O mundo a sua volta não a tirava de certa serenidade branca como sua pele.Às vezes Débora se irritava com a ausência de irritabilidade da irmã e confessava para esta na cozinha – distraída com o ocupar do tempo no forno microondas que providenciava – as mãos nas cadeiras:

-O que a irritaria, a irritaria de verdade?

O instante em que Lívia ficara pensando, os olhinhos azuis dançando nas órbitas, parecera à Débora um deboche, uma ironia de Lívia.Teve medo intimo: Lívia saberia que ela a odiava por isto? Mas se sabia era apenas por isto, apenas por isto...

-Ter que responder muitas perguntas – disse afinal sorrindo – mas me causaria uma irritação quase azul, de um azul quase lilás, como daquela blusa que gosto tanto, e não canso de repeti-la a qualquer lugar que vou.

Débora então sorria pelo canto da boca, olhando o prato pelo vidro fume do forno microondas, sabendo como já...

-Que azul lilás é este?

-Oras, Débora aquele azul da minha blusa – e virava-se – vou lá pegar a blusa para você ver.

Débora quase precisou dizer que não...precisava, mas ela já acudira, então para conseguir chegar, abandonou a cozinha.Pacientemente Lívia a buscava pela casa.O prato já estava pronto.E este dia era uma segunda-feira.

Segunda-feira...

Débora buscava em canções que ela não entendia a letra o toque.Sentada no sofá, ela podia abaixar a cabeça no tampo de vidro da mesa, e pensar calmamente, enquanto o calor brigava com a brisa, e Lívia procurava borboletas de cores diferentes em suas rosas lá junto da cerca.Débora queria nas musicas internacionais: o beijo, apenas o beijo sem palavras nenhuma.Não pensava na voz de Adriano, quando apenas pensava nele.Ele era lindo, de cabelo cortado como um militar, de olhos quase de um verde-cinza.Adriano às vezes aparecia de terno e gravata no paletó.Não era bem ele que aparecia, era ela que aparecia na repartição onde ele trabalhava, assim de surpresa como de surpresa para ele, mas de surpresa para si mesma que era ver ele perto da maquina de café.E os dois se olhavam espantados, surpresos, rindo, e muito tempo depois diziam alguma coisa:

-Hoje, hoje que faz um dia lindo lá fora...

Ele dizia o tudo que ela queria tanto dizer, mas ela bem que poderia dizer que o achava lindo de social, mas seria cafona ali no ambiente de trabalho, e dizia baixinho como que com vergonha também:

-Seria bom você estar de sunga comigo na praia agora...

Mas depois quando ela já havia ido embora, lembrava-se que a praia apenas era próxima da repartição onde ele trabalhava, mas longe, longe demais da sua casa.

Chegava em casa, procurava o que fazer, pensava em champanha e tomava guaraná antártica que Lívia comprara no açougue.

Lívia colava o retrato de cantores louros e com cara debochada em sua parede junto a seu beliche.Tinha uma satisfação irônica, como se a mãe fosse chegar do serviço e não iria gostar nada daquilo.Mas Às vezes encontrava a irmã assim com a cabeça desabada sobre o braço naquela mesa de vidro da sala, e a olhava com uma alegria estúpida, invejando aquela saudade que ela tinha à toa do dia anterior.

Terça-feira...

As aulas pareciam mais rápidas, e Lívia sentia-se bela no uniforme que era uma saia verde de pregas, uma blusa branca com o emblema do colégio, defendendo a mochila jeans encardida sobre os ombros.Correndo para que não sabia, mas tinha esta mania de correr à toa, rindo, às vezes ficando sem fôlego.

Mal chegava em casa, a irmã azafamada, ligando o som, secando as mãos na bermuda jeans que era uma calça que foi cortada as pernas.Débora assim, olhando num sorriso infantil para o aparelho de telefone, dizendo que ela tinha que ir ao açougue à frente comprar carne para o almoço.Débora a dera o dinheiro assim teimando em olhar para o telefone, e Lívia acabara olhando também, pegando o dinheiro das mãos dela.Saiu assim mesmo, com roupa de colégio, cabelos avulsos, meiãos até os joelhos, correndo à toa, rindo, como se a pressa precisasse.

Este dia foi terça-feira, como Lívia iria guardar.Mas nem soube se guardaria a data, porque se esquecia de data tão fácil.

O açougue era ali em frente, do outro lado da rua.O sol batia lá, mas um toldo cobria, um toldo negro com emblema de boi vermelho.Lívia chegava assim, logo após atravessava o sinal vermelho, respeitando a faixa de pedreste.Sentia buzinas para ela.Chegara ao balcão, assim como que rindo ofegante, mas ficou séria, de repente, ao olhar o rapaz atrás do balcão – que mesmo interrompera o que estava a fazer para atende-la – ele secara as mãos sujas de sangue na blusa já encardida que branca não era.Fizera até ela mesma olhar para sua blusa encardida de tinta de caneta.Ele lançou seus olhos grandes dentro de um rosto forte e moreno sobre a blusa dela, e pareceu reconhecer num sorriso de lábios carnudos.Riram assim esperando...Esperando palavras.Ele esperava mais palavras dela, e nisto ajeitou o bonezinho – também encardido de sangue bovino – na cabeça de cabelo encaracoladinho no casco.Seu sorriso foi grande pelos olhos grandes, grandes de um azul quase cinza, e parecia que saía lagrimas dos seus olhos, no que ele mais abria o sorriso.

E as palavras?

Lívia esticou o braço com o dinheiro entre os dedos de unhas pintadas de rosa, e disse tão tímida, como se explorada por ele, invadida:

-Um quilo de alcatra cortada em bife...

Terça-feira, era terça-feira mesmo no dia que não haveria mais data.

Ele não pegou o dinheiro, pegou foi um pedaço de carne no cabide da vitrine, e a mostrou, sem fazer perguntas deu a entender algo, que ela balançou a cabeça positivamente a concordar, e ele tomou como que ela aceitara.

Virou-se para ela a cortar a carne em bife com atitude destra.Lívia o admirou de costas, o achando ao belo assim como que dando adeus depois de um dia que ficaram tão juntos...Mas assim sujo da lide, comum como homem suado?

Lívia ficava assim de olhar para as próprias unhas, para ele de costas para ela, enquanto ele tinha o colega de trabalho para se distrair; este que chegara assim vindo do sol, arrastando as botas brancas pelo assoalho do estabelecimento, e era branco de cera, com orelhas enormes e sotaque de uma província.

-Ah, então me deixa aqui sozinho, olha que Celeste não voltou para ficar no caixa.

Lívia esperava, esperava pensando em Celeste, na Celeste que ele dissera.Sim, celeste era a que recebia o seu dinheiro quando vinha comprar guaraná antártica para Débora fazer de conta que bebia champanha.

-Celeste quase sempre não volta...não volta – continuava ele surrando os bifes que cortara sobre a mesa de mármore suja de sangue pisado – e você me sai para o almoço na hora que Celeste vai para não voltar mais.

Aquele outro soltou um grunhido palitando os dentes, ocupou-se da carne que ele cortava antes, deixando o palito no canto da boca.

-Está bom pode ir almoçar – disse o homenzinho de sotaque com palito no canto da boca, mudando de direção a querer tomar-lhe a freguesa.

-Não, não – disse ele colocando os bifes sobre um saco plástico que arrancou com violência de um rolo ao meio do balcão – eu acabo de atender a menina.

Lívia sorriu o encarando com coragem tímida, insistindo com o dinheiro, na ansiedade que era um medo.Ele bateu seus olhos grandes e um azul-cinza nos dela que fugiram covardes, totalmente covardes, porque ela havia ganhado algo bem mais especial: menina, ela era uma menina...E os olhos dele tão mergulhados de um azul-cinza úmido disseram algo mais que ela adivinhou, mas sabia ser a verdade.

Sim, ela pegou a carne embrulhada em saco plástico, recebeu o troco, e o deu as costas, embora percebera de traves que ele ainda ficara a olhando.

Certamente diria para seu colega:

-Que menina linda, um dia namoro uma menina linda assim...

Mas Lívia pareceu ter um interesse banal e essencial pelo açougue, como se depois do colégio o existir se concentrasse ali.E assim descobriu que Celeste era bem mais nova do que aparentava.Porque chegou ao balcão pedindo o guaraná com aparência de champanha, e chamara de senhora...

-A senhora...

Ela sentada – num banco alto por dentro do balcão frio – debruçada, olhou-a triste, num triste que ri de si mesma e disse:

-Senhora? Então é por isto que ele não olha para mim.

-Ah? Lívia fingindo que não entendera, mas ficara a par de tudo no mesmo momento.

-Lucio não me olha – olhou para trás defensivamente, mas Lívia sabia que não era ele o vulto meio-branco que se mexia lá atrás nas câmeras frigoríficas, porque ela continuou – Lucio, deve me achar...

-Que isto – disse Lívia perdida, alegre, porque sabia que o nome dele era Lucio – foi um modo de tratamento sem intimidade – justificou como cascata.

-Sou feia? Era uma pergunta? Por que se era, ela respondera o que com um movimento de cabeça tão sorridente?

E enquanto pagava, e esperava o troco – o que não tirara Celeste do lugar – nem lembrara que o guaraná diminuía o gelo, porque pensava: onde ele se enfiou?

Chegou a se aborrecer, mas era um aborrecer azul quase lilás – como a blusa que vestiu no final da tarde – e Débora chegara a se preocupar com o pouco caso dela com a comida.

E Berenice chegava em casa antes do escurecer.Era com o céu azul quase lilás.E pegava a mexer nas coisas, e Débora saía para praça mal iluminada, talvez achando que ela examinasse a poeira das coisas, mas na verdade Berenice só queria acariciar seus moveis.

Lívia passara assim, perto da cerca, fingindo tanto carinho com as rosas na penumbra da luz fraca de um poste, mas olhando para o açougue do outro lado da rua.E nem via o vestígio dele.Sentiu uma mágoa, embora soubesse tão feliz e nada ressentida que o nome dele era Lucio.Será? Mas que diferença iria fazer? Se ele fosse casado, tudo estaria perdido? Mas se Celeste – tão feia, que Deus a perdoe – queria-o, era porque não, não era casado.

Soube-se que nunca invejou o que vivera assim antes como bolha de sabão.

E ela precisava comprar guaraná com jeito de champanha, e foi assim, num sábado.Dia cinza, e se misturasse com o azul que era como os olhos dele.E ela levou um susto.Lívia que era...Lucio que nem sabia de Celeste por estes meios, mas queria acreditar que Lívia fosse possível.

-A minha bela menina – disse ele com audácia fazendo questão de ensacar o guaraná para ela.

Lívia sorriu tornando-se num leve róseo em suas faces branquinhas.Bem gostaria de ter a mesma audácia, mas para pergunta-lo onde ele se enfiara outro dia destes.É que ela não recordava datas, mas sabia do dia.O mal de tudo – para ela – é que ela era muito acanhada, mas para ele...E Lívia saiu assim de rosto escondido, sacudindo a garrafa dentro da bolsa.Ele ficou a olhando.

Lucio, ele é Lucio – dizia ela por dentro, quase cantando por fora, enquanto atravessava a faixa de pedestres.

Débora, que ansiava pela noite – sentada no sofá, passando esmalte nas unhas dos pés – sem olha-la fez a pergunta saudavelmente cretina:

-O que a irrita mesmo?

-Perguntas demais...Mas é uma irritação de um azul quase lilás.

Lívia havia ido a cozinha – onde deixou a garrafa de guaraná dentro da geladeira - e voltado, e foi que a surpreendeu:

-Repare na blusa, vou busca-la, para você comparar a verdade do que eu digo.

E quando Lívia voltara, então Débora já havia escapado para o portão onde Adriano a chamara. E entrou gritando de alegria espantada e acudida, que Deus nem dera tempo de se arrumar, e acreditando que ele vinha à noite, acreditando...

E era bom para Lívia sonhar, deitada de bruços, sozinha no quarto com luz acesa, uma musiquinha baixa num radio ao meio de suas coisas bagunçadas na penteadeira, com as pernas para cima, fingindo que entendia o que escrevia.Se entendia o que lia dos outros, mas não compreendia o que mesmo escrevia.A alegria infantil e vazia, e espaço de tempo para sorrir de pejo do que – graças a Deus – não entendia.

Era surpresa com seu punho, escrevera o nome Lucio várias vezes, muitas vezes, e depois de Lucio escrevera Lívia.Eram dois elles, assim alados, um debaixo do outro, cruzando nas linhas, de diagonal, como cruz, de qualquer jeito, encontrando-se, perdendo-se, encontrando-se de novo.Divertiu-se em ver necessidade de mais nada.E poderia dormir depois e procurar sonho, mas se não sonhasse, amanhã chegaria lá para comprar ou carne, frango ou guaraná, e ele a trataria assim:

-Minha linda menina...

Em qualquer ocasião, até que ela permitisse – que não demore – era assim: sua linda menina, a linda menina do Lucio, que não sabia de Celeste, mas acreditava nela...

Berenice arrematava roupas que mais pareciam remendos, quase surda e habituada ao barulho de outras maquinas.Sonhava com os seus moveis, sonhava com o futuro de Lívia, com o futuro de Débora que parecia tão promissor com Adriano, com Adriano que tinha tempo para trabalhar com teclado de computador, sonhando de vez em quando frente a maquina de café.

Berenice era assim dentro de um labirinto em seu pensamento fecundo embora banal, mas era assim escapando um sorriso no canto da boca, que as suas colegas de trabalho acreditavam que era ou podia ser um sorriso malicioso de uma mulher que sonhava com um novo marido.Tudo porque no almoço, naquela mesa de madeira comprida, sentadas em bancos de pernas bambas, ela contava - não praticamente contava – mas dizia assim quase não querendo dizer nada:

-No tempo do meu marido sabe...do Lourenço era assim...

Mas Berenice queria dizer que não precisava trabalhar tanto para comprar tanta coisa que nem acabava precisando.Mas era só ver a loja de utilidades na esquina do calçadão, a loja de eletrodomésticos...Fazia-se carnê...E seu marido era um homem que trabalhava suado numa oficina mecânica, e morreu assim como quem diz chega, não dá mais para viver assim sem nada, vou me embora.E seu olhar de despedida fora de quem mesmo pedira que não chorassem muito.Mas Berenice queria ser feliz assim, ajuntando carnês, comprando plásticos, acrílicos, rosas artificiais – embora cultivasse jardim – e quando via numa vitrine um vestido que, jamais cairia bem em si, lembrava-se de Lívia e de Débora.

Mas Berenice chegava em casa assim antes de escurecer...e nem perguntava pelo dia, falava à toa para as meninas do seu dia, que elas estavam para lá e para cá em seus afazeres que era quase propriamente não fazer nada.

Lívia então durante o dia estivera cuidando de suas rosas enquanto prestava atenção ao outro lado da rua: o açougue; e enquanto o toldo não descia, ela podia ver ele, às vezes encostado no balcão, celeste do mesmo lugar que sempre...Celeste que não sabia ele, e Lívia fingia não saber.Mas Lucio parecia dizer alguma coisa a olhando da onde estava, enquanto chegava freguês para se ocupar.

-Ontem não veio comprar guaraná – quem disse foi Celeste, e Lívia nem se espantou, justificando que não tivera dinheiro.

Ele, saindo de dentro da câmera de frigorífico, foi dizendo a vendo, abrindo sorriso nos lábios carnudos, nos olhos azul-cinza dentro do rosto moreno:

-Quando for assim pega por minha conta...

Ela sorriu rosada nas faces cândidas, agradecida ou envergonhada, estendendo de qualquer jeito a nota para pagar o refrigerante, que ele fazia questão de colocar numa sacola.Lívia sentiu que os dedos dele demoraram em seus.Sentiu uma alegria esquisita – como um bater de asas – com os dedos sujos dele encostando aos seus limpos e delicados, e sorriu mesmo de vontade, que viu vontade de sorrir espaçosa para o resto da tarde como se todos que passassem por ela merecessem também.

Ele – sabia ela – murmurava rouco e um pouco malicioso:

-Minha linda menina...

E porque o açougue abria bem depois que Lívia já acordava, ela nem percebia, mas ocorreu de perder a hora, e disse para si mesma que não iria, embora já estivesse acordada e não fosse mais possível dormir.

Débora perguntaria o porque da falta, ela responderia a verdade, esperando o café passar na cafeteira em cima do mármore da pia.Olharia as unhas, sempre limpas e pintadas, sonhando com as unhas sempre sujas de Lucio.E foi que escutou um ronco de moto, não soube por quê, mas correu à frente da casa: e era verdade – nem pensara – era verdade.Lucio era simples, um simples rapaz, mas pudera comprar um moto, uma simples moto que se diga.Andaria na garupa de uma moto – sem ter pensado nisto – então existira o que não pensara.Lucio usava calça jeans, e umas sandálias de couro que o deixavam com ar de safado, embora ela acreditasse naquela intenção azul quase lilás dele.

Débora diria daqui a pouco, no daqui a pouco que chegou, que tinha que comprar filé de frango para fazer estrogonofe.Lívia perguntaria sobre o guaraná, e Débora seria sincera:

-Se queremos comer estrogonofe...

Lívia assim: meio alegre, meio emocionada e surpresa, pediria a ele o quilo de filé de frango – porque ele fazia questão de servi-la – e depois ele indagaria sobre o guaraná.

Numa sinceridade rósea de corar, ela até sorriria – nem se ouvia o bater do outro lá na câmera frigorífica, e o contar de moedas de Celeste que os observava – e ele não deixaria por menos.

-com uma condição – fora ela com uma coragem cheia de dor, sem olha-lo nos olhos, admirando as carnes dependuradas na vitrine como se fosse coisa dele.

Ele se pôs alerta, com sorriso nos olhos grandes como que brilhando de uma emoção viril.

-Que condição minha linda menina?...E ele sabia que era atrevido e gostava dele assim.

-Que almoce hoje lá em casa – falou, levou um susto com o sorriso dele e com o olhar obliquo de Celeste.

Então ela levou o guaraná também.

Débora só entenderia quando o açougueiro chegasse então para almoçar em sua casa, e ela o olhando com um nojo antipático, embora não dissesse nada – alegando educação para si mesma – por dentro: que absurdo de Lívia...Um açougueirinho fedorento trazendo para dentro da nossa casa.

E ele comeria, com prazer, sentado ao lado de Lívia que parava de comer para observa-lo comendo, e ele ao mesmo tempo – notando-se observado – a olhava sorrindo bobo, corajoso por ser bobo, sujo, por estar fedendo a sangue de carne crua, enquanto a casa cheirava desinfetante afetado de eucalipto.

-Então seu nome é Lucio – foi vacilando ela sem notar, aproveitando que Débora se levantara da mesa – com cara de pouco caso – levando o prato para a pia.

Ele detendo a comida, que tentava escapar da boca, com a língua, foi balançando a cabeça afirmadamente, mas depois arriscou sem surpresa nenhuma na feição, mas de boca cheia mesmo:

-Como sabia?

Lívia entortaria a cabeça um pouco para um lado, e diria num sorriso assim...

-Ah, eu ouvi te chamarem...

Ele, limpando os lábios com o dorso da mão, diria num suspiro:

-E o seu é Lívia, que escutei sua irmã dizer...

Ela concordaria, satisfeita com a forma como se apresentaram, e tentaria a mão pela toalha de mesa com sucesso chegando a dele relaxada ali.Faria de conta que recuaria e ele correria atrás com a sua, e se pegariam rindo, sem que Débora – que voltava – pudesse entender do quer riam.

Então havia noite ali que nem se ouvia grilos, e o calor era grito pela boca da janela aberta para o tempo parado.

Então Lívia, arriscando-se a correr até o banheiro, deu para ouvir da sala que a mãe a irmã conversassem em tom de quem confirmavam uma desgraça.

-Açougueiro aqui da frente...

-Então sim...

( Mas, Raquel, entenda que eu...eu te amo...) – era a novela.

-Era só o que me faltava.O que nos faltava...

Lívia diria, rindo de toda situação transformada – pateticamente - em drama, que ele tinha uma moto, e por acaso Débora andava de limusine?

Então, de tarde com o sol querendo agir, ela voltou do colégio, trazendo na mochila uma caixa de bombons, e por isto voltara sem conversar com as colegas, e olhava toda hora para mochila – com cuidado – como se fosse possível a caixa de bombons sumir dali.

E chegando ao açougue antes de entrar em casa, encarou Celeste que mesmo compartilhou este encarar, e Lucio saía de dentro da câmera de frigorífico, arrastando muito as botas no chão, como seu colega que cantava muito – sem ninguém entender – fazia a qualquer instante.

E ele atendeu a freguesa ao lado de Lívia, sorrindo para ela e disse com seu ar moço de sempre:

-Minha linda menina...

Corou quando ela o entregou então...Se não era ele que devia.Alegou para si – em sua varanda na sua residência, que não se fique conhecendo – para lá e para cá, que foi falta de tempo, afinal tanta carne, carne, carne crua em sua frente.

Berenice se espantou aquele dia chegando mais tarde em casa.Já era noite alta com lua cheia e tudo era anil, e por causa do calor profetizavam tempestade pelas esquinas.Berenice achou estranho encontrar a sua varanda a esperando de luz acesa, ou os postes com suas luzes débeis emprestando claridade para o seu quintal.

Ao entrar em casa alguma coisa cheirava a desordem, embora tudo estava impecavelmente no lugar e limpo.Débora estava pronta com um vestido preto de decote, e no sorriso...Mas Lívia, no quarto, apressava-se também, era como se Berenice pudesse ouvir...Berenice que trazia uma bolsa quadrada e florescente, que quase carregava sorriso no rosto cansado.

Mas ouviu-se uma buzina de moto, e grande alvoroço se fez dentro da casa, como se uma bomba acabara de cair perto.Débora se pôs de pé, Berenice correra para olhar, mas Débora fora na frente, e chegando a janela já ousara dizer com um sorriso mal vestido no rosto:

-Uma moto a surpresa, Adriano comprou uma moto – e mal percebia que era estupidez a sua alegria.

No portão, com efeito, estava Adriano de roupa muito elegante e o perfume que se sentia dali da porta.E Débora foi se aproximando com um medo estranho de uma coisa que a encheria de uma vaidade feliz.

-Então...Foi quase arriscando, olhando para Adriano que lhe sorria gentil, mas para a esquina onde...

Então veio por trás dela, Lívia pedindo educadamente uma licença, com sua blusa azul-lilás, que ela pode ver, como viu que ela subiu na garupa da moto do açougueiro, que estava de jeans e camisa pólo...E antes que ela acenasse sorridente com ele arrancando com a moto, Berenice bem arriscou chegando ao portão a perguntar:

-Mas com quem...posso saber Lívia?

Mas ela já fora acenando para a mãe, a irmã e até para o namorado da irmã, segurando seu homem na cintura em sua garupa...

E ficaram suspensas como o calor pelas janelas.

Adriano ofereceu a mão a Débora – que disfarçou a mordida – e sorriu aceitando, dando um ignorado até logo a mãe, rumando para o ponto do ônibus com seu elegante namorado; antes de lhe dar um beijinho, no que ele se apressou a fazer sinal para o ônibus, ela olhou para o céu e disse:

-Acho que chove hein, acho que chove hein...

E a lua sorria redonda e as estrelas queimavam o negro azul do céu.

Berenice bem sabia...Mas açougueiro? Bem, carne está mesmo cara...

Dentro de casa, olhando a solidão acesa da sua sala, hesitava em ligar a televisão por um momento, e quando pareceu dizer que não dormiria esta noite...

-Compro segunda-feira mesmo aquela cristaleira no antiquário.Vai ficar linda na minha copa...

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12 de março de 2005

AUTOR: RODNEY ARAGÃO