CARONA PARA UM CAIPIRA
 
Era um indivíduo idoso, protegido por uma pequena sombra na beira do asfalto. Parei pra perguntar se ele precisava de carona, intimamente certo de que ele a aceitaria. E não foi preciso repetir a pergunta. Em um segundo lá estava ele apagando seu cigarrinho de palha e entrando no carro. Pediu-me, com rara humildade, o favor de levá-lo a Luislândia, exalando um característico hálito de fumo de rolo. Imediatamente liguei o gravador, sabendo que a conversa seria proveitosa.
“O senhor quer saber, moço, o que a gente faz aqui? Estou chegando de Brasília de Minas onde fui resolver um problema de loteamento para a minha filha. O que ela faz? Bom, ela é professora. Mas, o senhor não vai acreditar mesmo é nos preços dos lotes. Todos vendidos a trezentos reais cada um. Uma beleza, planos que nem campo de futebol. Agora, aqui a culpa é do lugar: veja o senhor, não tem nada. Estas duas fazendas que o senhor está vendo na sua frente são de gente muitíssimo rica, que tem muitíssimo gado. Só de fome e de sede morrem todo ano pra mais de oitocentas cabeças. O que é que o gado come? Mas o senhor não sabe? Animal é feito que nem gente, ele se adapta com o clima do lugar. Come o que tem pra comer. Gente também é assim. Ou não é? Pra gente, “exclusive”, é mais difícil. Gente tem de ganhar dinheiro e depois trocar por comida, porque não come mato, não come pasto. Tudo o que a gente compra em Luislândia a gente traz de fora. Com a graça de Deus, se tiver dinheiro, a gente consegue comprar. Água é que tá faltando. Logo ali na frente, indo pra São Francisco, tem um açudezinho, mas não dá pra irrigar nada. E olha que é de fazendeiro forte, que comprou até pivô central. Poço artesiano? Bobagem, moço, nunca se encontra água e quando o governo manda dinheiro pra furar, vão lá as pessoas mais importantes do lugar pra marcar onde furar, é sempre na terra deles. De cada cinco furos, só um tem água. E olha que assim mesmo é pouca. Que Deus me perdoe, mas a água tá acabando, para onde ela foi ninguém sabe. E onde vai parar o mundo, moço? Eu não sei, tá tudo acabando. O senhor é muito novo, não vai se lembrar, mas aqui tinha uma boa aguada naquele boqueirão, ela chegava a escorrer, encharcava tudo. Agora secou, Deus vai me perdoar. Os bichos de pena, como o nambu, acabaram. E o senhor conhece preá? É aquele coelhinho. Acabou também. As pessoas ficavam esperando chover, pra marcar as passadas dos bichos e depois seguiam até suas tocas. Mataram tudo, tá tudo acabado, não tem mais nada. Agora, virou sertão. Mas agora, abaixo de Deus, eu consegui me aposentar. Foi no governo do Fernando Henrique. Sim, abaixo de Deus, ele é um homem muito bom. Se eu pudesse, votava nele. O senhor vai votar? Aposentei como lavrador, com um salário-mínimo por mês. Gosto de São Francisco, a gente vai lá todo santo mês pra receber o salário de aposentado. Se não fosse o Fernando Henrique, ninguém ia conseguir viver nesta terra. O prefeito também é bom, arranja emprego pra muita gente. Sem isto, ninguém aqui ia ter o que comer. O senhor já viu algum lugar onde chove muito? É uma beleza, ver árvore e pastagem, tudo verdinho. Deus lhe acompanhe, moço, vou parar por aqui.”

Pronto, só com aquele depoimento o gravador já estava pago! Embora eu não perguntasse, ele aparentava estar na casa dos oitenta anos, mas conservava a lucidez e a conversação ligeira, que me deixaram aturdido. Falou praticamente num fôlego só tudo o que lhe veio à cabeça, como se aquilo fosse um texto decorado. Finalmente, antes mesmo que tivesse concluído o raciocínio, apontou onde parar. Foi o tempo exato de eu dar uma seta, jogar o carro no acostamento e vê-lo fazer uma mesura para agradecer.
Perguntou pelo preço, eu disse que não era nada. Apertou a minha mão com o vigor que ainda possuía e me recomendou a Deus. Pensei em dizer qualquer coisa, mas o velhinho já se empertigara todo para seguir em frente, enrolando mais um cigarro de palha. Tentei prosseguir a jornada sem acusar o golpe, mas estava inteiramente tomado por aquele personagem, parecendo recém-saído de um texto de Grandes Sertões: Veredas. Com depoimentos assim, pensei, não seria totalmente improvável ser Guimarães Rosa.
Cornélio Zampier Teixeira
Enviado por Cornélio Zampier Teixeira em 20/12/2018
Código do texto: T6531975
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