a velha senhora ( ou como sobreviver a seu tempo)
Nada dói mais que a dor na alma. A velha senhora nonagenária, ao proferir essas palavras, e antes que adentrasse no seu casebre, passou suas enrugadas mãos, porém, macias mãos, na face do jovem rapaz. Nascida e ali criada era a décima terceira filha de uma família de 18; a quinta entre 9 mulheres. A velha senhora, desde menina se destacava porque, fosse ela mais nova, era quem sempre se dispunha a socorrer um vizinho doente, uma grávida prestes a dar a luz; como todos diziam, ela era a luz que iluminava aquele fim de mundo.
Para muitos da região ela era a mãe de todos. Era raro encontrar uma família que algum filho não nasceu pelas mãos da velha senhora. O Próprio coronel, pai de 12, teve 4 que nasceram pelas mãos dela. E o seu Joquinha, homem dos mais velhos, certa noite, ardendo em febre, e sem parente próximo, teve os cuidados por dias a fio. Foi ela quem lhe deu os chás, as compressas e a comida. Seu Joquinha, não cansava de dizer que aquela mulher era a santa que lhe curou da febre medonha.
Desde menina era na terra que brincava. Cresceu, se fez moça, e na terra trabalhava. Aprendeu a espalhar a semente. A terra lhe ensinou que cada fruto, cada broto, cada colheita, é o agradecimento pelo cuidado recebido. Do pó viemos, ao pó vamos voltar, costumava dizer quando acariciava a terra para novo plantio.
A vida, ela em si dura, fez com que alguns dos irmãos fossem embora pra cidade grande, outros, viveram pela região. Dos que partiram, soube-se que 4 dos 6 que se aventuraram, tinham constituído família, de modo que, a velha sabia que tinha 12 sobrinhos, porém, nunca os havia conhecido, pois, nunca mais seus irmãos voltaram para aquelas bandas. E de saudade a velha se queixava.
Somente a velha senhora nunca saíra de sua casinha e do seu canto - gostava de dizer - e arrematava "nossa casa é nossa raiz, então, como ir embora de minha raiz. Pranta nenhuma vive fora do seu chão. Sou essa pranta e esse é meu chão"
O rapaz, pobre como toda gente daquelas bandas, foi acusado de ter roubado um bezerro de uma fazenda vizinha. A fazenda era do coronel. Todos sabiam que o coronel era homem rico e influente nas esferas do poder. Todas as autoridades, e até gente do planalto, tinham dívidas com o coronel. Indicações e mesmo contribuições para campanhas de adversários, faziam do coronel, o verdadeiro dono do poder. E foi por uma acusação dele, que o rapaz foi condenado. Cumpriu a pena imposta, todavia, nunca confessou o tal roubo, afinal, como confessar o que não fiz, falava o rapaz quando preso e mais agora solto.
A velha senhora, a única, se pode dizer, nunca acreditou na acusação, sempre que podia, andava léguas e léguas para visitar o rapaz. Ele nem parente era, mas, "é dever meu, dar conforto para quem sofre injuria ou injustiça" Nossa vida não vale um punhado de terra se a gente se conforma com tais medidas, era sua missa, como ela mesma dizia, quando alguém perguntava a razão de visitar alguém que nem da família era.
A única certeza que temos, é que temos nossos dias. Não podemos ignorar essa preciosa espera, então, devemos dedicar aos outros a bondade que deles esperamos. A velha senhora, nascida e criada naquele lugar esquecido, era, para muitos, uma espécie de sábia alma. Uma alma que, sem conhecimento das letras, era capaz de dizer coisas que só se ouviriam de doutos advogados.
Todos sabiam que naquela quentura, o sol a pino, torna os dias tão secos e o ar tão pesado, que não se encontra ave, gado, calango ou qualquer outro ser vivente. Os que não eram carcaças, estavam escondidos debaixo de um fio de sombra que fosse.
O lugar era deliberadamente esquecido. Era língua corrente que aqueles almofadinhas, filhos de famílias abastadas, ignoravam aquela gente.
Movidos por um sentimento de cegueira entabulada por gerações a fio. Todavia, a velha senhora, nascida e criada naquele fim de mundo, tinha, aos olhos daquele povo, algo que dava aos moradores, certo orgulho de pertencerem aquele lugar. Eram pobres, sabiam, todavia, pertencer àquela lugar e àquela gente, fazia deles seres especiais numa terra especialmente maltratada e esquecida. Lutavam, como tantos outros antes deles, para que a vida seguisse, porém, era na presença da velha senhora, que encontravam força.
O jovem rapaz, solto e buscando tocar a vida, desde que deixara a cadeia, e sem ter onde morar, passou a ocupar um pequeno cômodo que ficava ao fundo da pequena casa. Por muitos anos o espaço servira de depósito e, às vezes, de dormida para algum viajante sem recurso para a única pensão do local. Era pequeno; possuía um velho colchão, uma coberta, uma pequena mesa encostada na parede e um quadro com velhas fotos da velha e seus irmãos, ainda crianças.
Nada dói mais que a dor na alma. A velha senhora antes que adentrasse no seu casebre, passou suas enrugadas mãos, porém, macias mãos, na face do jovem rapaz. O moço a olhou, e como se respondesse ao afago, carinhosamente lhe beijou as mãos. A velha entrou, antes, porém, de fechar a porta, parou e olhou. Foi um olhar de contemplação, um último olhar. Entrou. Deitou e dormiu.
O jovem rapaz conta que depois daquele dia, a casa se tornou um local de parada acolhida a quem de passagem. O coronel caiu em desgraça e sabe-se, apenas, que morreu sem que reclamassem seu corpo.