Conto das terças-feiras – Feliz Natal para quem?
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 18 de dezembro de 2018
Depois de um dia todo cozinhando para os patrões, Zulmira, que há 47 anos trabalhava para Marília e Pedro Azuray, suspirou profundamente e dirigiu-se ao seu quarto, localizado em uma área da mansão do casal. Tomou banho e deitou-se em sua cama, à espera de um chamado da patroa, para mais uma jornada de trabalho. Sabia que os convidados só chegariam depois das 21 horas.
O cansaço a fez dormir pesadamente. Sonhou que estava em casa de sua mãe, exatamente na noite de natal. O esquisito é que ela não conhecera a mãe, pois vivera num orfanato até os dez anos, quando fora doada para os patrões ainda pequena. Sua atividade inicial foi fazer companhia ao pequeno Arthur, na época com apenas três anos. Fazer companhia ao pequeno foi apenas uma expressão eufemística, ela fora comprada no orfanato, como se fazia na época do Brasil colônia, com os escravos. Sua missão era fazer pequenos serviços na mansão e, também, vigiar Arthur.
O sonho era sobre uma noite de natal com os seus pais. Uma casa pobre, onde faltava tudo, só não amor e carinho. Zulmira sentia-se feliz naquele ambiente, pois não era exigente de coisas materiais. No sonho, sua mãe a chamava de Zuzinha. Os demais irmãos, em número de quatro, faziam algazarra no terreno ao lado da pequena casa. Corriam para lá e para cá, perseguindo um cachorrinho que participava alegremente da brincadeira. Todos estavam vestidos em suas roupas novas, embora usadas, doadas pela patroa da mãe. A felicidade reinava naquela casa, nem mesmo os pais eram tristes, apesar da pobreza e do sofrimento que a família carregava.
De repente o interfone a acordou. Assustada ela deu um salto, levantou-se e olhou para o velho relógio que havia ganho da patroa num Natal, fazia 20 anos. Mais que depressa ela vestiu-se com o seu melhor uniforme e caminhou em direção à luxuosa residência dos Azuray. Os amigos da família já haviam chegado. Todos os anos eram os mesmos, diretores do banco do qual o Dr. Pedro era o dono, alguns amigos e respectivas esposas, elegantemente vestidas, e os dois filhos do casal, Mariza, esposo e dois filhos adolescentes, e Arthur, esposa e três filhas, as duas na casa dos vinte anos de idade. Era uma família linda, mas de poucos sorrisos. O patrão trabalhava muito, a patroa vivia com depressão, os filhos moravam fora. Aquela casa só se iluminava para as festas de fim de ano. Festa que também iluminava o sorriso de Zulmira ao rever Arthur, homem feito e bem-sucedido. Ela sentia orgulho dele, por muito tempo lhe guiara os passos, criança, adolescente e até pouco antes de se casar. Era como se um filho fosse, deu banho quando criança, servia-lhe as refeições, e, apesar de semiletrada, ensinou-lhe as primeiras letras. Era sua companhia na ausência constante da mãe. Davam-se muito bem, mas o preconceito distinguia a distância que os separava.
O garçom e duas garçonetes, contratados para servi-los já tinham iniciado os trabalhos, os presentes ostentavam uma bela taça de cristal à mão. Era Champanhe importada da França. Estavam sóbrios, mas a conversa não evoluía. Uma linda árvore de natal ornava uma das salas de visita. A casa estava belamente decorada, tema sempre novo, surpresa. Dos convidados ouviam-se elogios discretos. Marília, um pouco abatida pelas constantes crises de enxaqueca e depressão, respondia com um leve movimento com a cabeça.
Chegada a hora do jantar, todos sentaram-se à mesa, nos seus lugares de sempre, as garçonetes trouxeram primeiro os pratos de salada, depois as carnes e demais complementos. De longe Zulmira via apreensiva. Olhava para a fisionomia de cada convidado, tentando captar qualquer expressão facial diferente, sinal de reprovação ao seu cardápio, elaborado com amor e carinho todos os anos. Era a única ocasião que parecia agradar à patroa, que se sentia feliz com os comentários elogiosos terminado o jantar.
O ambiente tornou-se silencioso, só quebrado pelo tilintar dos talheres e destes batendo nos pratos. Longe ouvia-se músicas natalinas, o que não era permitido naquele ambiente formal da mansão durante a ceia. Também não se podia conversar, apenas saborear cada prato com o maior respeito. Marilia fora uma grande chefe de cozinha, tinha o seu próprio restaurante, com cardápio especial, elaborado por ela e sob sua supervisão, eram preparados os pratos solicitados pelos seus fiéis frequentadores. Eram políticos, industriais, militares de alta patente, juízes, banqueiros etc. Nessa época ela conhecera o Dr. Pedro Azuray, por quem se apaixonara. Sua doença, infelizmente, não a permitiu continuar fazendo o que ela mais gostava.
Participando daquilo tudo, por tanto tempo, Zulmira comparou o momento atual com o sonho que tivera há pouco. Em seu local de observação, em pé e de mãos juntas rente ao peito, ela se questionava: em casa de minha mãe, mesmo com toda aquela pobreza, eu seria mais feliz do que todas estas pessoas? Eu seria livre de protocolos, de mesuras, de patrões e de amigos chatos e vazios, isso eu tenho certeza. Eu teria carinho e muito amor, eu seria feliz!