O CASO DO CIGARRO

A passarela ficava ao lado da empresa na qual trabalhavam, mas apesar da segurança que conferia aos seus passantes, ainda assim, eles insistiram em cruzar o asfalto. Foi uma correria desenfreada, de um meio-fio ao outro. Tudo isso com a intenção de economizar míseros minutos para não perder o micro-ônibus que os levaria de volta para casa.

O coletivo chegou, subiram logo. Cheio como sempre, esperaram que alguns passageiros descessem quatro paradas depois como era de costume. A primeira a se sentar foi Valquíria Botafogo. Sentou-se à janela conforme sempre gostou. À sua frente, instantes depois, acomodaram-se Jordan e Enrico, o primeiro ao canto e este último na ponta do assento multicolorido que alegorizava aquele veículo já tão carnavalizado, feito duma lataria tricolor e com assoalho pintado de cor alumínio.

Quando o micro-ônibus atingiu mais ou menos a metade da viagem, ele lotou novamente. Sentados ainda no banco azul turquesa com pequenos minimosaicos em amarelo canário, os dois rapazes, funcionários de produção da indústria farmacêutica do bairro mais famoso da cidade, conversavam. Diálogo animado, gargalhadas exageradas, típicas de quem terá folga no dia seguinte.

Valquíria Botafogo, que estava acomodada no banco detrás, parecia interessadíssima no bate-papo daqueles seus alegres companheiros de trabalho.

_ Ah! Também quero saber do que estão rindo, conta vai!

_ É que nosso supervisor contou que quando era jovem, desfilou por uma grife de moda praia de uma loja lá de Madureira.

_ Quem?

_ João, é o nome dele, você mesma o conhece, disse que foi até fotografado para uma revista de propaganda naquele tempo.

_ Era de sunga, era?

_ Sim, usava uma sunga coral mamão-papaia, acredita? E que a partir de então, passou a ser destaque do Cacique de Ramos.

Enquanto conversavam, Valquíria esticava-se e projetava o seu busto para frente, apoiando-se no encosto do banco azulado. Sua região lombar ficou exposta, e consequência disso foi que, a parte posterior da cintura da calça ficou com um vinco considerável. Permitiu-se assim, que um velho pescador, também passageiro daquela viagem, segurando o balaústre do micro-ônibus, barbudo e de cabelos desgrenhados, conseguisse sem querer, jogar uma ponta de cigarro pela janela, e a binga impulsionada pelo ar que soprava contrário acertasse o espaço entre a lombar e a calça da amiga de Jordan e Enrico. Pasmem! Isso mesmo! Arremessou o resto de cigarro aceso através da janela, e devido ao vento causado pelo veículo em movimento, aquele pobre senhor com unhas grandes e sujas de tanto cortar minhocas que o serviram de iscas naquela pescaria à tarde, teve a infelicidade de que a binga esfumaçada e ainda em brasa encontrasse o veio entre a roupa e a pele, no intervalo dos glúteos superiores da funcionária de fábrica com sobrenome de time de futebol carioca. Então, pasmem novamente! O pobre do ancião imundo, já assustado do infortúnio que causou, resolveu enfiar a mão no regato da Valquíria. Ela desorientada, sem entender ainda o que ocorria, mas sentindo a quentura incomum que lhe atenazava, levantou-se, na vontade de esbofetear o sósia de Matusalém. Esse "pescador de confusões" tentou explicar-se e contar o que acontecia, porque, a "chupeta do diabo" continuava entre os glúteos da revoltada colega, enquanto o homem encardido prestes a chorar gaguejava e apanhava. Por isso, pasmem pela terceira vez! O septuagenário, motivado pela infeliz tentativa de explicar-se e avisar à trabalhadora farmacêutica quanto ao fato da binga ainda se encontrar no seu "entre-lugar", lançou-se novamente na empreitada perigosa de mergulhar as famigeradas mãos calejadas na "reta-guarda" da coitada. _ "De novo! De novo, seu tarado!" _ Gritou Valquíria. Mas desta vez, a caricatura de "Mago Merlin sul-americano" afastou-se, dizendo que só tentou apagar o fogo que a mulher mantinha no traseiro. Enfim, a amiga de Jordan e Enrico, ao ouvir o já afastado velho pescador, entendeu o que acontecia e retirou o amassado pedaço de cigarro.

Após os ânimos acalmarem-se, passageiros que assistiram à cena perguntaram aos rapazes amigos da senhora Botafogo, por que eles não fizeram nada?

_ Vocês não são amigos da moça? Olhem só, toda queimada e arranhada na bunda coitada.

_ Estamos até agora sem entender direito o que aconteceu, nem assimilamos ainda tamanha confusão.

_ Deviam se envergonhar!

Assim, para dar cabo desta história, vale dizer que o pior ainda estava por vir. Ela precisava contar ao marido o porquê de tantos arranhões e marcas de brasa naquela parte feminina que é considerada preferência nacional entre os homens brasileiros. Pois, sabemos caro leitor que nos dias de hoje, é quase moda um certo sadomasoquismozinho entre relacionamentos extraconjugais. Mas isso é assunto de casal, e entre marido e mulher, você já sabe... Enfim, nunca mais se teve notícia do maior e mais desastrado pescador de acarás-de-buraco que já se viu. No entanto, sabe-se que a história do fato ocorrido no micro-ônibus ainda é contada naquela indústria farmacêutica, e que Jordan e Enrico perpetuam esse acontecimento com o engraçado testemunho do inacreditável caso do cigarro.

Autor: Erick Bernardes

Publicado inicialmente na UOX - REVISTA ACADÊMICA DE LETRAS-PORTUGUÊS

Fonte: http://ojs.sites.ufsc.br/index.php/uox/article/view/1490

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