Casa de farinha
A carroça, pesada de trabalho, pelejava em andar pelo cascalhal brigante, a sangrar o lodo do aguaceiro dos últimos dias. Não adiantava Cristovão tripular sua nau de jegue para levar a produção do dia ao reiterado destino. Tinha vida própria, no cansaço do animal em seguir para o alvo pendular, para o casebre de finas paredes, em pés de galinha-capoeira, coberto com telhas mortas de sol e chuva e sol, feitas nas coxas.
Certo como sua vida, para demorar o caminho, ou o animal findava cascos no terreno, ou a madeira das rodas empacava na lama, imóvel. Para convencer aquele carro em seguir cheio de mercadoria, precisava, não raro, do açoite do marmelo. Ou do muque de beiju seco e café de pó coado, salgado na falta do açúcar, da inaugural refeição deserta.
Era quase tarde na casa, esquálida, pronta para farinhar. Ponto de encontro, a praça inexistente do assentamento, coberta e sem chafariz, onde todos se topavam, depois de ceifarem da terra as enxadas e os triunfos.
No diário arroz-com-feijão, a espera do coroamento saído daquele castelo-casebre. Hora da quebradinha, para ligar o boiar do prato, finalizado com um osso seco de carne da guisada galinha, e o alface do agacho da leira de Dona Zilu, vizinha de parede.
Da boca de entrada da casinha, enchiam-se os despejos das trações de mãos e de jumentinhos, com os frutos do trabalho. Os frutos-raizes, a se amontanharem, para depois desvestirem-se do barreio, pelas mãos das rodas de conversa, sentadas nos toscos tocos de jatobá. A labuta virava hora de papear e enriquecer aquele ar com cantorias e lamentos, recheadas de risadas e de dentes por cuidar.
Dos calos de mão e do ingênuo maquinário, sairia a massa, a pasta, a goma, o alento. Aquele, pronto para todos, trocado nos trocos embolados, e transportado em potes e saquinhos simples, para que seus punhados regassem os pratos, virassem beijus para quitutear, ou preparassem farofas úmidas e amanteigadas nas panelas, no saboreio de dias honestos em cada burgo da vila.
Mal arriou sua produção da manhã, parou para aguar a testa e a goela naquela água dúbia largada de coxo. Lavou a aparência e sua chinela, arrastada firme na soleira, a adentrar a poeira de barro naquela casa de fazer farinha. O faixo de luz a passar pela quebrada coberta denunciava a mistura dos papos e cantos com as névoas pairantes, no giro branco do braço das pás que vagavam sobre o ferro quente daquele maracanã em tina.
No cansaço, chegou junto de Zé Mulato, sua infância que não podia reconhecer naquele inebriar. O amigo junto da giratória máquina parecia médico, no brancor de partícula de mandioca seca por cada quinhão de corpo ainda em vista. Só faltava a máscara para aquele momento de cirurgia.
Para que proteção contra aquele pó matreiro? Bastava ao amigo a reza matinal e a crença na bobagem de que não havia dano capaz de estorvar aquele trabalhinho de leva-vida.
Cristovão cravou olhar trincado no movimento dentro daquele tacho aquecido. Respirava o mesmo teor de pó que Zé Mulato deixava adentrar em narinas, pulmões e inconscientes. O girar-girar que fazia a alva-fina farinha, assíduo, compasso, era hipnose, e apagou em si a presença do chão, dos papos e das pessoas sentadas e levantadas, do telhado, das janelas e portas.
O torpor branco tomou conta do seu olhar, das memórias. Viu no alvo vazio de nada, caminho de um tudo. De um outro, de cogitar.
E se perguntou o porquê daquilo, daquele cenário, da história pisada nos cascalhos da ruela que resumia sua vivência.
É possível diferente?
Por que não? Por que, não?
Pôde ali, parado diante daquele nad’alvo, experienciar conquistas de intelecto nas letradas escolas da cidade grande, e emoldurar a parede com seu sabor de vitória de consquistador-doutor diplomado.
E comprar não só uma, como duas casas boas, com água jorrada no cano e muitos quartos e banheiros e piscinas. Cenário de novela.
E aproveitar jantares e refeições inteiras, com louças e lenços sobre o colo, para se fartar de pratos nunca imaginados.
E deixar a carroça de rodas finas de madeira encostada, para conduzir seu carrão, movido não mais a capim.
Virou reconexo o cleck do virar de chave do amigo. Máquina em silêncio no fim de preparo do novo-velho produto, na farinha pronta na máquina de divagá-la e afiná-la bem-feita.
Sem nem autorizado, montou a concha no palmo, aproximou-se do arrasto feito pelo amigo Mulato, pronto para encher o coxo baixo de madeira com seu alvo trabalho, feito quem alimenta animal de curral. Deixou o fluxo cair e formar o montinho quente na destra mão, para aproximar ao rosto e apreciar o cheiro de novidade de todo dia.
Boca e nariz receberam o sedento seco manjar, para completar o fim do trabalho da manhã, no gosto e cheiro de certeza de que estava tudo na sua palma da mão, na vidinha sua de pegada de enxada e de pegadas de volta para casa, a marcar o barro-molde e encrustar as unhas dos pés respirantes, protegidos na chinela braba.
Aquela era a sua experiência, de ele mesmo poder respirar poeiras muitas e várias, e mover pedras de solitário caminho, antes de chegar em casa para se preparar para a lustrada tarde de classes e pautas de cadernos, sobre cadeiras e mesas de peroba.
Já sabia.
Porque, não.... Porque não.