São José dos Sofredores dá o perdão
Pêdo Capoeira acorda, como sempre faz aos sábados. No primeiro cantar do galo já esta aceso, virando um gole de café na goela, no meio do terreiro. Luça das Dor, que também madruga neste dia, misturou a carne frita e o torresmo na farofa amarela de feijão, sem se esquecer da malagueta, que junto da “Caninha” era o abridor de apetite do peão. Silenciosamente, arrumou tudo na Bruaca. A seu modo bruto, alertou mais uma vez;
— É o cuai de fazê os quêjo, a linha de custura, o pano do vistido de Evinha, criosene e rapadura! Vê se num enche o rabo de cachaça e torna esquecê!
— Deus acumpanha! – Disse ela quase sem abrir a boca. Retornando com pisadas fortes para dentro de casa.
O cavalo Aranzé conhecedor do trajeto e daquela sina do mesmo dia, mastiga um capim ralo, ali na beira da cerca, enquanto o dono ajeita o arreio. Pêdo anda feito pirilampo, se movimenta naquele breu com o cigarro de palha na boca, o galo canta mais uma vez. Ele cruza os dedos no peito pedindo a proteção divina, alisa a crina do cavalo e puxa a rédea. De uma pequena abertura na janela, Luça também faz o sinal da cruz dizendo em sussurros;
Deus acumpanha! – Continuou a observar o vulto do marido, até ele se fundir ao borrão denso da mata.
Muitas léguas separam Pêdo Capoeira do seu destino, Imburana era depois de subidas, descidas, trilhas, riachos e morros, após incontáveis tons de cores que tingiam a vegetação, passarem lentos feito rolo de filme as margens da estrada, de imensuráveis melodias orquestradas pelos pássaros e pelos ventos. Nesta estação a natureza não se esconde, a vida brota das pedras. Imburana é o lugar de concentração do comercio de toda cercania, onde a igreja de São José dos Sofredores, recebe milhares de romeiros durante o ano. Pais de família que arrastam mulheres e filhos por centenas de quilômetros para pagar promessas, agradecer pela colheita, pela cura da enfermidade e pela chegada do sonhado filho homem. Outros chegam aos trapos, cadavéricos se apoiando em muletas, mulheres ossudas e crianças de pés no chão, estes querem ajuda do santo para não morrerem de fome, querem a benção para pagar as dividas e refazerem empréstimos. Mas antes de se meter naquela baderna, Pêdo Capoeira vai olhando o sol subir com a mão sobre os olhos, pelas contas já passa das nove horas, passam também cruzando a estrada, Iambus, Codornas, Juritis, e uma Pomba-Verdadeira que se assusta e por pouco não lhe arranca o chapéu com a asa. A poeira sobe no trote cadenciado do cavalo Aranzé, mas há um cheiro de felicidade nos olhos do peão, eis que a Serra da Pintada surge imponente, silhueta majestosa, a estrada ganha um novo galho, um coelho marrom ameaça sair da mata, mas se arrepende e volta quase flutuando sobre as folhas secas. Pêdo tira a binga da algibeira e acende outro cigarro, toma gosto da palha e sopra um denso canudo de fumaça cinza, naquele meio surge uma Garça branca, que plana leve na linha do horizonte, outra baforada forte e como um passe de mágica, o pássaro se encanta misturando-se a candura das nuvens. Mais alguns contorcionismos sobre trilhinhas que cortam caminhos e é hora de descanso, pela altura do sol é um pouco além das dez, Aranzé bufa e sacode as orelhas se livrando de mosquitos incômodos. A beira da estrada, projetando sua sombra rodada, uma Sucupira Preta de roxa floração é o lugar onde Pêdo Capoeira depõe a Bruaca. Destampa a cachaça e dá um gole medido, sente o gosto e torna a bicar, antes de encarar a matula, faz o sinal da cruz e olha aos céus, agradecendo a Deus. Aranzé liberto temporariamente dos arreios anda livre, mordiscando a relva em direção ao Córrego do Zé de Piu, que ele conhece tão bem. O sino da igreja de São José dos Sofredores repica alto, ecoa naquela imensidão, como se tivesse sendo tocado pelos anjos do céu. Pêdo Capoeira sente um aperto no coração e espora o cavalo, galga os últimos obstáculos da Serra da Pintada e avista aquela infinidade de gente, casas, automóveis e Maria Rita com seu vestido branco, sentada a sombra da Amendoeira, ela olhava absorta para a estrada movimentada.
— Boa tarde cumade Ritinha! – Falou passando a mão no rosto para livrar-se do suor.
— Boa tarde cumpade Pêdo! Tomei até um susto! Como é que vai a cumade e os menino? Belmiro gostou do brinquedo?
— Vai bem grazaDeus! Gostô dimais, tanto inté de fazê briga, num dêxa ninguém incostá!
— O senhor num quê entrar um pouco! Acabei de fazer uma garapa de limão!
— E o cumpade cumé que tá? Deu nutiça?
— Mandou carta por Luzete de Fulô! Volta semana que vem!
— Sei! E os minino cumade? Juvenila, Juvinela, Marin e Martin? Tá tud’ bem?
— Ora se ta! Foi todo mundo pra festa da Laranja nos Vicente! Chitãozinho e Chororó vão cantar lá!
— Uai cumade intão sinhora ta é sozinha?
— Sozinha cumpade! Num entra e sai danado que eu estou nele! Vou lá dentro faço uma coisinha ali, tomo um cafezinho acolá! Volto e sento aqui, só vendo a currumaça de penitentes passar! É cada gente feia, só Deus pra ter piedade!
— Se é assim intonse, vou até sortá o Aranzé, pa nós tomá uma garapada!
— Olha a saliência cumpade!
— Eita cumade, mar eu num tava veno à hora de chegá aqui logo!
— Cumpade de Deus! Que fogo é esse home?
— Fala não cumade! Dêxa a coivara estralá!
— Cumpade, espera um pouquinho! Isso não é pecado não?
— Se for nóis pede perdão pa São José! Ele perdoa!
— Ué! Então vamos pecar com gosto, ai pede um perdão só!
— Eita cumade safada!
— O senhor me respeita cumpade! Eu nunca lhe dei ousadia de me chamar de safada não viu? Se Gumercino escuta um trem desse! Ai, ai. Aquilo é mais ignorante que uma cancela!