Clima controlado
Stella foi a primeira a chegar, como de hábito. O shopping havia acabado de abrir e ela estava do lado de dentro da entrada noroeste, encapotada, calças jeans, botas, gorro, cachecol, luvas e protetor de orelhas. Trocamos dois beijinhos no rosto.
- Deus nos livre da nevasca que você está prenunciando - disse ao ouvido dela.
- Nevou essa madrugada - defendeu-se ela, pendurando o protetor de orelhas no pescoço.
- Olha que ainda faltam duas semanas para o Natal... espere só até a Noite Mais Fria do Ano!
- Isso só em fevereiro! - Exclamou ela com alívio.
O restante do grupo foi chegando aos poucos. Mike, Thea, Ruth, Don, Phil... todos na casa dos 70 anos de idade como eu e Stella, e todos animados para começar a rotina diária.
- Vocês não conseguem nunca chegar no horário? - Ralhou Stella.
- Velho dorme pouco - provocou Phil, me piscando um olho. - Quem é a mais velha do grupo?
- Velho é a sua avó! - Stella esticou um dedo magro para ele.
- Que está no Céu, santa mulher - retrucou Phil, olhos voltados para cima.
- Crianças, chega! - Atalhei. - Temos que dar seis voltas dentro do shopping, deixem para discutir na hora do café!
- Sim senhora, professora! - Phil ergueu as mãos como quem pede desculpas.
Saímos em grupo, tagarelando pelos corredores vazios do shopping. A maioria das lojas só abriria muitas horas mais tarde, apenas a cafeteria da praça da alimentação estava funcionando e em parte por nossa causa: éramos os seus primeiros frequentadores nos dias de semana, e até mesmo disponibilizavam uma arara para que pudéssemos pendurar os casacos (e outros apetrechos) enquanto fazíamos a caminhada matinal.
- Você não acha que este ano está mais frio do que no ano passado? - Ruth inquiriu Stella.
- Eu sou da opinião de que a cada ano está ficando mais frio... defensores do aquecimento global que me perdoem - Stella me encarou com os sobrolhos erguidos.
- O aquecimento global provoca desequilíbrio climático, com aumento nos extremos para cima e para baixo na escala de temperatura; não se pode negar que esteja ocorrendo - ponderei. - O que se poderia questionar é a influência humana no fenômeno.
- Velho sente mesmo muito frio - espicaçou Phil. - Com ou sem aquecimento global.
- Vocês dois se provocam tanto que vão acabar se esquentando na mesma cama - troçou Ruth.
- Estou muito bem viúva - resmungou Stella. - E esse aí é vulcão adormecido.
- O Vesúvio também era - retrucou Phil.
- Explodiu, apagou, e está morto até hoje - devolveu Stella.
- Amém - disse eu, para encerrar a pendenga.
Seis voltas dadas dentro do shopping, nos sentamos à cafeteria para beber algo quente e discutirmos os problemas do mundo.
- Como você resolveria esse problema do aumento global das temperaturas, Frances? - Indagou Thea.
- Se eu fosse presidente dos EUA, - respondi - mandaria a NASA colocar grandes painéis opacos em órbita, para fazer sombra sobre os oceanos. Assim, eles não esquentariam tanto e reduziria a incidência de furacões, secas, derretimento dos pólos e coisas do gênero.
- E se a Terra for plana? - Questionou Mike. - É o que está na Bíblia, não é?
Não me dei por vencida.
- Então construímos um esquadrão de drones enormes, controlados por computador, cada um deles segurando uma placa hexagonal. Os drones voam abaixo do Sol da Terra plana e criam o mesmo efeito de sombra dos meus painéis orbitais da NASA.
Diante dos rostos espantados dos meus colegas de caminhada, apressei-me em explicar:
- Ei, isso é só uma brincadeira, OK?
- Frances para presidente dos EUA - sugeriu Thea.
- Já tem meu voto - Don ergueu a mão.
- Muito obrigada, povo, mas somos canadenses. Nem que quiséssemos muito, eu poderia concorrer para presidente dos EUA.
- Esse é o problema do mundo - filosofou Don. - Nós canadenses, resolvemos os problemas do mundo e ninguém quer nos dar crédito.
- Resolvemos os problemas do mundo dando voltas num shopping - acrescentou Phil.
- E tudo isso antes do café da manhã - riu Stella.
A reunião terminou tão animada quanto começara.
- Amanhã, à mesma hora? - Indaguei para Stella, após pagarmos a conta e pegarmos nossos casacos.
- Que dia é amanhã? Quinta?
- Quinta.
- Mesma hora, mas faremos o circuito na direção contrária... lembrem-se todos! - Alertou ela.
- Regras da Stella - observou Phil em tom mordaz.
- Andar sempre no mesmo sentido é chato - disse Ruth. - Essa mudança das terças e quintas, é bem-vinda.
- Eu tenho uma teoria sobre a inversão de itinerário... - comentou Phil enquanto nos dirigíamos para a entrada noroeste.
E perante nossas caras de interrogação, ele acrescentou:
- Mas só digo amanhã.
E, ignorando nossos protestos, saiu assobiando para o estacionamento.
- [10-12-2018]