Efêmeros Eufemismos


Na loja de calçados da Santos Dumont Marimília era especialista, contra sua vontade, em vender sandálias – o chefe lhe dissera, secamente, que ela não servia para mais nada. Quem conhecesse Zé Gumercindo, cultivador de milho em Prudente de Morais, entenderia seus modos rústicos: cabelos extemporaneamente hippies, linguagem chula de excluída social em regime de aprendizado e, eventualmente, exalando certo odor característico nas axilas. Mesmo assim tinha herdado do pai um legado extraordinário, o gosto de inventar palavras. Na sua pequena experiência escolar explicaram-lhe, sem sucesso algum, que devemos seguir a cartilha do léxico. A esperança dos que a ouviam todo santo dia era que seus neologismos não vingassem ou tivessem vida curta como a de um mosquito.
Heranças! Pouca gente herda dos pais seus melhores dotes, talvez uma lição da Genética para nos dizer que nos esforcemos para construir nosso próprio capital. Mas não é que a moça, bem cedo, descobriu que tinha esta mesma virtude do pai? Sabemos que temos o dom inventar quando descobrimos, antes, que temos o dom do entendimento tácito. Pois foi assim que ela se viu como descobridora de palavras, pela via tortuosa de entender que Seu Padilha era um imbecil quando seu pai disse que ele era um inergume. Palavra estanha, ela pensou, talvez precisasse ainda de algum polimento, mas explicava direitinho o que ele queria dizer.
Na linguagem coloquial do dia a dia era um desastre, errava feio na concordância (além de falar alto e sibilar os esses exageradamente). Mas, sua boa relação com as palavras raras e com o precoce entendimento do que não estava claro podiam levar a pensar nela como uma tosca-culta, um marruá da gramática. Às vezes entrava em profunda agonia pré-depressiva: era quando, diante de uma situação nova, ficava pensando se não poderia expressá-la por um determinado conjunto de fonemas
Havia algumas que ela parecia querer inventar, outras que simplesmente sabia entender sem explicações. Frequentemente ela se antecipava ao entendimento e à invenção. Por exemplo, entendeu primeiro, ao seu modo rude de entender, o que significavam sarcasmo, sutileza e ironia. No passo seguinte ela teve o pressentimento da existência do eufemismo. Pra que Aurélio, pra que Google?
Se ela soubesse, de ouvir, talvez concluísse que eufemismo soava bonito e agradável, diferente de achismo, palavra que ouvira do chefe várias vezes antes, quando, perguntada por compradores sobre a existência de um determinado número ou cor, respondia “achando que tinha”. Não, esta nova palavra escondia mistérios secretos e bem guardados. Na hora certa, ela saberia.
Um dia ela quase teve certeza. Foi quanto cometeu a besteira de, no primeiro encontro com um paquera que pegava a mesma linha para Venda Nova, confessar que tinha gostado muito dele. Na hora de pronunciar o muito, caprichou, de propósito, entregando os pontos. A resposta que ouviu deixou-a tão pensativa quanto insatisfeita: idem. Forçou a barra esperando algo mais esclarecedor, mas o sujeito apenas trocou seis por meia-dúzia abduzindo uma expressão mais generosa: a mesma coisa.
Tentou lembrar algo que pudesse reforçar sua intuição. No passado recente, tivera o exemplo de Dona Estela, a antiga patroa nos tempos em que ela ainda estava no estágio de empregada doméstica. Pois foi lá que ela ouviu, enquanto espanava os móveis perto do telefone: estou em casa dando uma força pra minha ajudante. Dar uma força! Consultou a carteira de trabalho pra tirar a outra dúvida, mas lá constava apenas o cargo de empregada doméstica. Quando indicou a empregadora como referência para o cargo de vendedora no centro, veio a mesma ideia incômoda de estar diante de uma palavra nova, quem sabe terminada com “ismo”? Sim, ela, a ajudante, podia ser considerada uma pessoa estimada e que não subtraía nada.
Logo depois ela se casou, repentinamente, com outro paquera que encontrou na mesma linha 61 de Venda Nova. Quando ele se cansou de conquistá-la, todos os dias, como prometera no primeiro encontro, passou, subitamente, a referir-se a ela como uma boa esposa, uma expressão tão desagradável como... ironia? Não, a palavra não cabia; talvez pensasse o mesmo diante de sátira, gozação, deboche e outras mais que lhe oferecessem. Desta vez quase acertou o alvo: enfêmico, efêmero ... a mente cansou de buscar e então desistiu. Dias depois aquele estranho sentimento se confirmou e ele saiu de casa de mala e cuia. Boa esposa? Aquilo era um ... o quê mesmo?
O raciocínio ficou rápido de uma hora pra outra. Tentou explicar aquilo, não com palavras, mas com entendimento da situação por inteiro. E teve a certeza de ter encontrado a resposta certa: chamá-la de boa esposa se tratava apenas de um desvio de consciência, não era ela quem era boa e sim ele, que fazia o elogio público. Achou que seria a última vez que ia se esforçar, não para entender o significado, mas sim para achar ou inventar o som exato de uma palavra que desvendasse exatamente aquele sentimento de que estava levando volta. Ser boa esposa era uma contradição?
Daí em diante, sentindo-se angustiada e andando em círculos, quantas vezes ela se deparou com palavras que, pretensamente dirigidas com sonoridade de elogio ou gratidão, não passavam de gracejos ou cinismos? Ah, devia ter uma palavra que servisse para ela enquadrar toda aquela impotência de procurar e não achar; por certo quando a descobrisse saberia com a mesma certeza intuitiva de uma futura mãe quando, antes dos exames, já descobre que está grávida. Ficou repetindo várias vezes o som de outras palavras, sem qualquer convicção de encontrar a resposta, não obstante a íntima certeza de que a palavra certa deveria terminar com um ismo qualquer. De repente, em não mais do que poucos dias, as coisas se precipitaram.
O torturante quase se transformou em fato promissor quando, na reunião dominical dos moradores do bairro com o agente da saúde pública, um sanitarista explicou pacientemente a vantagem de conduzir os esgotos domésticos em um canal fechado: era para poupar as pessoas da visão desagradável de sólidos flutuantes. Certo como dois e dois são quatro, era agora uma questão de um dedo a mais para ela descobrir. No dia seguinte, foi ao laboratório perguntar sobre uns exames médicos. A secretária, depois de lhe entregar dois frascos, recomendou assim e assado para ela coletar as amostras. Sólidos flutuantes, amostras, tudo não era a mesma m ..., digo, a mesma coisa?
Foi a primeira vez, diante da aflição para roubar do vento uma palavra nova, que ela se deu conta da sua ignorância. E então se sentiu incomodada, matriculou-se num curso noturno de secretariado e meteu a cara nos livros. Não aprendeu muito, apenas o suficiente para gostar ainda mais das palavras. Sim, foi por essa ocasião; ela não sabia, e, por não saber, achou que os escritores sabem tudo porque escrevem e não porque lêem. E então, depois de tocaiar por uns dias uma ideia descobriu que poderia escrever sobre aquilo. Que tal consultar uma colega de trabalho considerada culta? Seria sua última prova. Trabalhou o texto durante semanas, até que um dia entregou duas folhas preenchidas e ficou esfregando as mãos até ouvir o veredito.
Finalmente a mesma resposta invasivamente indesejável, com o mesmo tom enviesado, que agora fazia todo sentido. Havia um não, dito escondido atrás do dito, um ismo qualquer. Nada de estímulo para que continuasse a escrever. Nada de críticas objetivas ao escrito. Apenas a dor do vazio. E não mais que meia dúzia de palavras vagas bastou para que ela descobrisse, de fato, uma nova sonoridade chegando de mansinho, soletrada aos poucos como se quisesse testar sua paciência para o achado. Finalmente, quando ela olhou para a linha do horizonte com aquele sorriso das grandes descobertas, teve a certeza definitiva de que aquilo era eufemismo.
Cornélio Zampier Teixeira
Enviado por Cornélio Zampier Teixeira em 05/12/2018
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