O FIM DO COMEÇO

O FIM DO COMEÇO

As mãos calejadas e o chapéu de lebre eram pouco para descrevê-lo. O pedaço de terras, o Mata-Cavalos, era como se fosse seu complemento nominal. Um sitiante, um lavrador, um fumeiro edificado sobre o orgulho da qualidade.

Lugares são pessoas e só me lembro de Mata-Cavalos por causa delas, nem do tempo e nem do lugar me lembro bem. Mesmo quando, jogado em seus ombros, a mais remota lembrança da vida, é dele que me lembro retornando à noite da capelinha.

De suas mãos enérgicas e duras recebi os primeiros castigos e também o aperto amoroso que me levou à escola. E também a isca e o ensinamento para pescar os primeiros peixes no rio e as doses de Emulsão de Scott.

Tinha o porte ereto e o linguajar desprovido de vulgaridades que vinham da linhagem nobre do ancestral Alferes José Joaquim Teixeira, português de Braga que migrou para o Brasil no tempo do Império de Pedro II.

Quando se casou com a italiana Dina, ampliando seus horizontes mediterrâneos, trouxe ao mundo seus filhos pelas mãos da parteira Iá. Então construí meu castelo, com personagens de verdade. Lugares são pessoas.

O rio lá embaixo, que a gente via por inteiro desde o meio da colina ocupada com a plantação de fumo. O pasto defronte, com pacíficas vacas de leite, o paiol de milho, o terreiro de secar café, a cozinha de terra batida e a varanda voltada para a sombra da tarde. São lembranças, mas as pessoas estão dentro delas.

Minha mãe tinha cursos de corte e costura e culinária, distintivos de moça prendada e pré-requisitos para o casamento. Meu pai teve a honradez de um eremita. Os dois, ao seu modo e à moda antiga faziam um casal feliz, sem muito romantismo, mas plenos de cuidados mútuos. Tinham nos filhos seus maiores projetos. Ele gostava de contar casos e vivências. Nas noites de lua cheia eles levavam os filhos para a varanda da cozinha e falavam de seus passados. Falavam dos bailes de roça, de como se conheceram e do dia do casamento. Ele contava histórias de uma família onde os irmãos mais velhos apadrinhavam os mais novos e se tornavam responsáveis por eles.

Um dia se foi o filho mais velho, fulminado por um tétano galopante, aos doze anos. Tornou-se então sorumbático e enfezou o semblante. A casa se tornou triste, nunca mais permitiu a chegada da Folia de Reis. E qualquer diversão, incluindo o Douradão, era uma traição ao seu sentimento de perda. A partir daí transferiu aos filhos a missão de acompanhar a mãe aos almoços de domingo na casa italiana.

Redobrou-se em cuidados com os filhos menores, ficou mais rigoroso, definiu o que era certo e errado. Um código de condutas foi determinado e bastavam quatro regras. Respeitar os mais velhos. Não mexer naquilo que é dos outros. Trabalhar. Não ter vícios. Um edifício inteiro sustentado em poucos pilares.

Esta era a rotina do Mata-Cavalos. Plantar o milho e o feijão em setembro. Colher o arroz de brejo em fevereiro. Plantar o fumo em março e terminar a safra em agosto. Matar quatro porcos por ano e exercitar a arte de encher a linguiça. Vestir a fatiota para os casamentos de maio, os bailes de roça, a coroação da Virgem Maria e as rezas, procissões e novenas para chamar chuva. Ou, simplesmente, para ver Pedro Batalha leiloar as prendas, Juventino acender os foguetes e a meninada correr atrás das varas até cair dentro da lagoa onde tinha jacaré.

Previstos na Folhinha Mariana os ventos mornos de agosto chegavam na segunda semana, com constância e pontualidade. Batiam portas, afrouxavam tramelas, arrancavam telhas e carregavam bolos de capim em círculos junto com a poeira do chão.

Era também em agosto que se organizavam torneios de futebol de várzea ao mesmo tempo em que vinham as floradas de frutíferas, as queimadas e os cachorros zangados. Montavam exércitos de voluntários para correr atrás dos cachorros, matá-los e enterrá-los. Perseguiam as queimadas fazendo aceiros, jogando água, abafando com terra solta.

Todo ano a mesma coisa. Acontecia até o dia quinze de agosto, bem no meio da temporada de cachorros zangados. Aqueles fabricantes de fumo de rolo, já com os paus de fumo acochados e as cordas exalando a caramelo continuavam esperando os compradores, as queimadas, os cachorros zangados e as chuvas de setembro.

Vem aqui menino, já pra casa. Toma a bênção à vovó. Não fale o nome da doença ruim.

Os meninos gostavam de ver gente em movimento, correndo atrás do fogo, atravessando grotões, ameaçando os casebres cobertos de sapé.

Não passava de dez da manhã. Zé Goela, o bêbado do lugar, passava pela estrada poeirenta arrastando uma égua pangaré que o seguia em sua pachorra, mancando de uma das pernas por causa do estrepe que entrara no buraco da ferradura onde devia ter um cravo. Os meninos olhavam e riam. Zé Goela, monta nela, diziam em dueto.

O bêbado, ainda sóbrio naquela hora do dia, seguiu em frente e os meninos o acompanharam com os olhos até quase sumir de vista, na curva da estrada já entrando na última fazenda antes da serra. O mais velho viu o clarão saindo do meio do capim seco, as chispas avermelhadas soprando para noroeste, na direção do grotão do rezador do lugar.

Os meninos já sabiam de sua obrigação quando viam o fogo. Jogar de volta o bagre no córrego e passar na venda pra avisar. Depois correr pra várzea onde o pai ajuntava os carás, passando pelo cachorro da casa sem notar que ele não fizera a festa de sempre enquanto caminhava a esmo pela estrada de terra com o rabo entre as pernas.

O pai acocorado junto à lata de inhame. O vizinho, com sua mão esquerda esquecida e dobrada na linha da cintura, o ajudava com a mão boa. Os meninos chegavam com o coração na boca. O mais velho gritava “pai”, o pai se irritava “que foi, menino!”, é o fogo, dizia o menino. Os homens escondiam na moita do barranco a lata de inhame, mandavam os meninos avisar fulano e sicrano e a correria para apagar o fogo de agosto que começava. Era uma festa imitando tragédia.

O pai disse ao mais novo: “fala pra sua mãe que vou apagar fogo, não sei quando volto”, o que queria dizer uns três dias. E pegou a direção da estrada, onde o menino o seguiu com a vista até sumir na curva.

O menino não afrouxou o passo quando subiu o morro dos jacarandás até o ponto mais alto do divisor de águas e lá de cima viu os homens lutando contra o fogo e o vento noroeste, as charretes puxando água, os meninos mais velhos juntando vassourinha para abafar as chamas.

Os meninos também gostavam de ver os peixes largando seus esconderijos assim que a água do rio esquentava. Nadavam e pescavam e amarravam jequis nos esteios das pinguelas e pegavam carrapatos ou bichos de pé.

Também gostavam de ser pombos correios, levando e trazendo notícias. Mãe, o mascate turco está com duas malas de aviamentos. O pai mandou avisar que só volta quando o fogo no pasto acabar. A tia mandou dizer que a broa de mandioca estava uma beleza.

Meu pai, me guiando pelas mãos, chegou comigo à escola e disse à professora que eu já sabia ler. Um disparate, ela pensou, um menino deste tamanho, ora veja. Ele disse, leia, eu li e ela desatou o coque dos cabelos grisalhos e disse, vem cá menino, senta na terceira fila, já está no segundo ano.

Depois ele foi à cidade, não para me comprar brinquedos, mas para me trazer livros, a História de Guilherme Tell e a Reforma da Natureza. No Mata Cavalos, sob a luz da lamparina alimentada a querosene, o menino de cinco anos lia, trabalhava, pescava e até brincava.

Meu pai ficou sério depois da morte do filho mais velho. Uma semana antes ele arrancou um portentoso bicho de pé encravado na cabeça do meu dedão e contou uma piada de Bocage. Depois disso tirou a antena do rádio, deixamos de ouvir futebol, minha mãe se esqueceu do Direito de Nascer. Só no fim de setembro, depois do último cachorro zangado ser perseguido, morto e enterrado, depois da última língua de fogo ser apagada, depois da terra lavrada e das sementes de milho lançadas nas covas foi que ele religou o rádio, justo no dia que o Repórter Esso falou da morte de Jeimisdim com um tom de funeral que contaminou todo mundo.

Os homens gritavam entre si, sugerindo e dando ordens.

- Faz um aceiro ali, faz outro acolá, dizia um.

- Se o fogo passar desse ponto chega até o Nego Batalha, alarmava-se outro.

Os homens com as enxadas raspavam o solo, tirando o capim-gordura seco. “Está muito estreito” e, depois do dito uma língua vermelha e quente saltava o aceiro enquanto o vento mudava seu curso, vinha a má notícia, o fogo agora ia em direção ao canavial, ainda com cana para cortar. O morro a pique só ajudava o vento. E os homens largavam a posição e subiam a colina em desespero para fazer mais um aceiro com medo do fogo chegar à coberta de sapé da casa do rezador.

Os homens sumiam de vista, o menino descia o morro para contar à mãe o que vira. Ela largava a máquina de costura, diminuía a lenha do fogão e cozinhava menos feijão, para não estragar. Depois ia para a janela olhar o clarão do fogo atrás do morro e fazer seu ar de conformada e contar histórias aos meninos até o fim do terceiro dia antes de perder a calma.

Os meninos falaram do sumiço de Peri, a mãe achou que ele também tinha ficado zangado. Ela disse que as galinhas deixaram de fugir dele na véspera e que Miau o provocara sem reação. Os meninos escutavam enquanto mudavam de mãos a gata da casa, com menos paciência que de costume.

Ao chegar a noite a mãe trocou a roupa dos meninos e os arrastou pelas mãos para buscar consolo, atravessou o córrego de águas transparentes em direção à casa de Venina, sempre ocupada com o perrengue dos filhos. Dois meninos com catapora coçavam as feridas quase secas e o menorzinho ardia em febre. Foi dar banho nos meninos numa bacia com água morna e sabão de coco e se esqueceu de reclamar.

O irmão mais velho arrastou o pequeno pra um canto e contou o segredo de dois dias. Disse que tinha comprado um maço de Caporal Amarelinho, que o tinha escondido num tipo de casamata dentro da moita de bambu lá no fim do grotão onde tinha pé de mexerica. E pra que cigarro, é pra virar homem ele falou com ar de quem precisava desta atitude até o próximo sábado quando ia ver Marinês no baile do Zé Chico. Logo ele, que só tinha treze anos, ainda não sabia dançar o calango e hesitava em vestir suas calças compridas.

Os meninos comeram broa pela manhã, limparam os dentes com café preto e subiram o grotão encosta acima. Finalmente, o mais velho se abaixou sob os bambus, entrou na vala em forma de casamata e, mais rápido do que entrou, saiu de lá com uma caixa de embalagem brilhante e fitilha dourada na parte de cima que servia pra abrir o maço e então rompeu o lacre da embalagem, tirou o papel transparente do fecho do maço e abriu uma fresta entre o selo e o canto e cheirou avidamente as pontas dos cigarros dizendo ao irmão que também cheirasse. Os meninos fizeram tudo aquilo sem se dar conta de que tinham quebrado um pilar da doutrina paterna da boa educação.

Chuparam mexericas para disfarçar o cheiro de cigarro e desceram tranquilamente a encosta para ver se Peri e o pai tinham voltado e se a mãe já se acalmara. Quando chegaram o pai já estava em casa, com ar cansado e abatido, junto da mulher. Sem falar nada do fogo e sem olhar os filhos nos olhos falou com naturalidade “matei o Peri” e perguntou se os meninos queriam saber onde ele estava enterrado. Ninguém quis.

Naquele dia os meninos não foram pescar carás e lambaris. Esqueceram do baile e do maço de cigarros, fazendo luto pelo companheiro morto. No domingo comeram macarronada, uma receita que a mãe costumava fazer quando não ia ver os pais, seguindo a fórmula da avó italiana. O pai olhava os pratos dos meninos pela metade prometendo que arrumaria um novo cachorro se eles quisessem, mas ninguém quis. Os meninos choraram um pouco e depois foram brincar como qualquer outro menino e nunca mais se falou em cachorro.

Depois das queimadas e dos homens apagando o fogo, dos cachorros zangados sendo perseguidos, mortos e enterrados, os ventos também se acalmaram e o cheiro do fumo de rolo se dissipou. Vieram as primeiras chuvas de setembro, junto com o odor da terra arada e a vontade de comer tijolos e a plantação de milho. E então os peixes saíram dos esconderijos do córrego depois que a água esquentou. Miau ainda não tinha se conformado com a morte de Peri e deu de se esconder nas cinzas do fogão, bem lá no fundo onde começava a chaminé, mesmo que não estivesse fazendo frio. Sua pelagem foi caindo, depois emagreceu um tanto assim, não resistiu e também morreu na primeira semana de outubro, quando o pé de manga lançava ao chão as primeiras frutas juvenis.

Quando os meninos nasceram, junto com eles nasceu aquela muda singular, de parto natural, um evento de sorte para uma semente lançada descuidadamente. O pé de manga cresceu e se fortaleceu com eles, como o bezerro e Mílon de Crotona. Depois de cinco anos, quando a copa embasava dois lances de galhos fortes e já sustentava os meninos sem vergar, ele deu de dar flores sem fim.

Depois cresceu e espalhou a copa e depois alastrou as raízes acima do nível do chão e depois formou a cama de folhagem. E assistiu ao primeiro tombo e aos primeiros sonhos de vida.

O vôo nupcial das tanajuras e seu mergulho no chão coincidiam com a queda das frutas jovens que os meninos catavam no chão e colocavam no estilingue. Quando a mangueira completou o sexto ano duas mangas ficaram maduras, bem pintadinhas, no meio da folhagem. Experimentá-las revelou aquele sabor imenso que entrou na boca, escancarou na alma e se imortalizou na memória.

Finalmente, bem antes dos suspensórios serem trocados por cintos e calças compridas, veio a festa da mangueira plenamente carregada, do aprendizado de chupar manga no pé, de tirar a manga na forquilha da vara de bambu e da mangada cremosa no tacho de cobre. A suculência escravizou para sempre os meninos que habitavam aqueles galhos. Os corpos leves e magros escalavam o tronco, subiam comprimindo o peito contra a casca até a altura dos primeiros galhos, até que a pele sangrasse, depois vinha o prêmio de chupar a manga, a paz de espírito, de pensar em nada, de escutar o barulho do vento, de descansar simiamente os corpos no escondido da folhagem.

No ano seguinte, por causa dos filhos, o pai vendeu suas terras, juntou as tralhas, foi pra cidade. A mãe morreu de desgosto, segundo dizem, alquebrada pela saudade do Mata-Cavalos, arrastando nessa viagem seus pais italianos. Depois se soube que o pé de manga também sentiu a falta dos meninos, as folhas ficaram amarelas e caíram. Ele então foi lá, retalhou o tronco com o machado e encheu os entalhes com sal para matar “os bichos”. Não deu certo. A árvore, cúmplice com os meninos, também não aceitou a separação.

A mulher deixou filhos pra ele criar e ele prometeu que o faria bem. Enviuvou-se para sempre e depois também se foi. Agora a memória do alecrim do campo se mistura ao cheiro do torresmo frito e da carne de panela sobre o angu. Não se passa um só mês de maio sem que a lembrança traga de volta a cor violácea das floradas de capim gordura e os sons de sanfona nos bailes de casamento, sempre feitos no mês de maio.

É nestes momentos que ressurge, como se fosse do nada, a voz de Nana Caymmi cantando “De volta ao começo”, música de se ouvir sentado, em posição de mantra.

E o menino com o brilho do sol, na menina dos olhos, sorriu e estendeu a mão. Este menino entregou seu coração, entrou na roda e cantou as antigas cantigas de amigo, irmão. Despertou do sonho que não o deixou viver. Depois a vida explodiu em seu peito, com as cores reais que ele não tinha sonhado, descobrindo a força que nunca o tinha abandonado.

Foi então que chegou ao fundo do fim, de volta ao começo. Fim.

(In: ANOS DOURADOS NA TERRA DA MANGA UBÁ - Memórias de Minha Janela). ISBN 978-85-86540-70-7. Editora Alis, Belo Horizonte, 2014 – 254 p)

Cornélio Zampier Teixeira
Enviado por Cornélio Zampier Teixeira em 30/11/2018
Reeditado em 04/04/2019
Código do texto: T6515907
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