Alice no País da Realidade

Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração

que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

- Em que espelho ficou perdida a minha face?

Cecília Meireles em “Retrato”

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Sete horas da manhã e Alice olha seu marido, Morfeu, tomar seu café como todo dia. Completa hoje suas bodas de prata. Há 25 anos ele toma café à sua frente. No início, a estas horas, o aniversário de casamento era comemorado com flores, palavras doces, surpresas gravadas no espelho do banheiro e confissões sussurradas ao ouvido. Saudosa, Alice lembra-se de momentos pretéritos vividos ali mesmo na sala de jantar, na privacidade velada pelas paredes, talheres e o olhar divino de Cristo a brindar na Última Ceia, silencioso numa pequena réplica pendurada na parede da obra de Da Vinci.

Enquanto todos conversavam e bebericavam, o Cristo estava ali a olhar em silêncio tudo o que transcendia a tela. E sob este olhar quantas loucuras, carícias e declarações amorosas não foram realizadas. Igualmente, quantas repreendas e lições foram dadas e recebidas aos filhos que, por hora, residem distantes do lar e da asa protetora dos pais. A maternidade é eterna, mas seu domínio é efêmero e passageiro, permanecendo na saudade dos rebentos que apenas retornam como visitas, deixando os quartos e os corações vazios.

Ela olha para Morfeu e sorri em cumplicidade com seus pensamentos tão privados. Agora, novamente, são apenas os dois, juntos à mesa. Como há vinte e cinco anos atrás. Ainda reconhece os traços retos e marcantes daquele jovem que a conquistou. Na primeira vez que se sentou nesta mesma cadeira, à sua frente tinha um jovem homem recheado em sonhos, inseguro de suas realizações e apaixonado. Via nele o reflexo do desejo de quem experimentou o sexo, e gostou.

Era uma sensação gostosa, difícil de se descrever aquela que leva uma mulher a se encantar com um homem que mal conhece e entregar a ele todos os próximos dias de sua vida e receber dele os seus numa economia em que se ganha ao se entregar. Pode ver hoje sob a suave tintura alva depositada pelo tempo e por trás das rugas e sobrepeso aquele mesmo garoto encantador de antes. Que substituíra apenas seu sorriso largo de seu queixo reto e viril por um semblante plácido de quem alcançou a estagnação senil. Suas reflexões privadas já perduravam meia hora e nenhuma palavra fora dita por seu amante, nem por ela mesma. Permanecem cúmplices, mas agora em vez de sonhos partilham o silêncio.

Alice lembra dos momentos mais íntimos que viveu em tempos áureos aos braços de Morfeu. Um calafrio gostoso sobe-lhe pela espinha eriçando seus pêlos expostos nos braços amolecidos pelo tempo. Ela também não é mais aquela mocinha de pele aveludada e curvas desenhadas à mão pela mãe natureza. Agora ela também sente-se quadrada e deselegante quanto o senhor que toma sereno e comportado o seu café. Olha para baixo e vê grandes seios entregues à energia da gravidade. Porém é outra energia que quer Alice se entregar neste momento, de seios, corpo e alma. Um desejo martela-lhe privadamente. Ela quer o calor de Morfeu a correr pelo seu corpo e aquecer suas entranhas.

Num sorriso maroto Alice se aproxima vacilante e sorrateira sem ser notada por Morfeu. Ela pára e recua indo para o quarto. Diante da penteadeira observa-se no espelho. Vê uma senhora despenteada com uma camiseta rasgada da última campanha política de um deputado, cujo nome mal dá para ler num borrão vermelho ostentado sobre seus grandes e caídos seios. Abaixo está uma saia preta desbotada e sandálias de dedos. Como a pele está prejudicada! Uma lágrima desce silenciosa percorrendo singela por sua face. Sua feminilidade se esvaiu sem ser notada. Aquela pessoa noutro lado do espelho tinha idade para ser sua mãe. Mal percebeu como o tempo consumira seu corpo. Na flor da maturidade, faltando pouco para completar cinqüenta anos, viu em si uma mulher de setenta. Outras lágrimas se juntam à primeira, trazendo com elas soluços e logo um choro copioso e sentido. Deita-se na cama e entrega-se ao desamparo. Não fora isto que havia planejado. Estava velha antes do tempo. As atividades diárias não a deixaram perceber a juventude e ânimo se esvaindo a cada dia.

Debruçada sobre a cama retornou ao passado, indo ainda mais longe nas lembranças. Quando era garotinha sua mãe lhe contava a história de Alice no País das Maravilhas, da qual veio o seu prenome. Sua maior alegria era brincar de Alice e criava a cada brincadeira um novo personagem a povoar o sonho encantado da menina.

Vira-se de costas para a cama e olhando para o teto suspira sentida. “Alice no pais da realidade, isto sim é o que vivo...” disse para si mesma. Resolve levantar-se e vai tomar banho. Toca seu corpo pensando em como poderia ser diferente a sua vida. Pensa em tantas artistas famosas até mais velhas do que ela que ostentam corpos lindos e sedutores a dar inveja a qualquer mocinha. Ela não!

Enrolada na toalha chega ao quarto. Procura algum creme hidratante e não encontra; apenas pomadas e remédios para dores de todos os tipos. Lembra-se de um velho conjunto de maquilagem que ganhou de sua filha, antes mesmo desta se casar. Revira as gavetas e encontra a maquilagem. Passa uma base no rosto um pouco sem jeito, mas com muito capricho. Depois um batom completou o rosto, pois o rímel já se tornou pedra e as sombras se fossilizavam rumo ao mesmo destino. Numa caixinha de madeira escolhe um longo par de brincos banhados a ouro e um colar de pérolas falsificadas e se adorna com eles. Alice vai ao guarda-roupas e procura uma veste que lhe traga a feminilidade perdida. Num saco transparente e pendurado no cabide um azul marinho brilha ostentando lantejoulas e vitrilhos tão azuis quanto o longo cetim do vestido. Está guardado há três anos, desde o casamento de sua filha. Ocasião em que outrora também se esforçou para brilhar.

Abre o longo zíper e se põe a tentar entrar. Quatro quilos a mais parece fazer-lhe diferença, mas finalmente consegue erguer as mangas e fechar com certo esforço e malabarismo o zíper e os colchetes que dão maior segurança. Está apertado, mas persiste. Vai à sapateira e pega um par de sapatos com salto quatro e coberto com o mesmo cetim azul marinho e flores com vitrilhos e lantejoulas, algumas já se descosturando.

Senta-se na cama e percebe que as pernas não estão depiladas. Não tem material para isto no momento e calça cada pé com o mesmo esforço com que se vestiu. Levanta-se vacilante e se vê no espelho. Sente-se mais bonita do que a última imagem que viu. Seu corpo é pura dor e já mal se preocupa com o desejo que motivou a produção. Vai tentando se equilibrar sobre o salto até a porta. Da soleira vê o azul brilhante da televisão. Morfeu está entregue ao seu próprio encanto e, como na mitologia grega, confia-se ao sono ignorando o programa que assistia.

Decide não acordá-lo e volta cabisbaixa para o quarto. Novamente as lágrimas insistem em descer por sua face, levando com elas a maquilagem que havia passado na pele. Não quer mais nada, apenas sumir ali mesmo na cama. Olha pela janela, ainda é dia e precisa aguar as plantas. Sente-se só.

Uma voz rouca corta o silêncio:

– Vai sair?

Ela se vira para trás e lá está Morfeu boquiaberto e confuso olhando para ela de cima abaixo. Os olhos de ambos estão vermelhos e inchados. Dela pelo choro, dele pelo sono. Alice corre desajeitada em direção dele e o abraça. Morfeu retribui vacilante e preocupado. Percebe claramente que algo está acontecendo, mas não faz idéia do que seja. Ele a abraça forte e afaga-lhe a cabeça.

– Sente-se na cama meu bem!

Diz Morfeu. Ele não sabe o que fazer. Olha para Alice e percebe o quanto ela está bela. Não havia reparado o quanto ela se tornou uma senhora bonita. O conjunto de produção encanta-lhe os olhos e aprova silenciosamente a nova apresentação de sua esposa. Porém o que lhe preocupa são as lágrimas que bailam em um semblante triste e perdido. Sim, algo está errado com Alice. Será que ela encontraria outra pessoa? Inseguro, Morfeu se remói privadamente. Novamente compartilham o silêncio, cada qual com suas próprias dúvidas. Vacilante ele diz:

– Você não me quer mais?

– Não é isto! Eu te amo, sempre te amei, mas estou com um aperto no peito.

– O que está acontecendo com você? Está estranha. Nunca te vi assim.

– Você já não me vê há muito tempo. Sinto-me sozinha, desprotegida, mal amada.

– Nossa! Como não te vejo? Estou com você todos os dias! Eu te amo meu bem e estou sempre do seu lado...

– Grande porcaria! Você só come, dorme e assiste televisão. Acorda e nem bom dia me dá, fica calado o dia todo, só me procura quando quer alguma coisa... Eu não agüento mais!

– Ora! Você que nem me dá mais carinho, quando chego na cama você está dormindo, só quer saber de cuidar da casa. Faz anos que faz amor com a cabeça longe. Também não agüento mais, estou cansado desta mesmice da minha vida.

Novamente o silêncio impera no ambiente. Se fitam por um instante. As declarações ouvidas surpreendem os ouvintes e aliviam os falantes. Um sorriso puxa os lábios de Alice. Ela não está sozinha, em silêncio os dois compartilharam por anos a insatisfação, mas nenhum teve iniciativa para conversar sobre este sofrer. Quando o diálogo franco e acolhedor deixa um lar abre espaço para intrigas e desentendimentos, o sofrimento velado e solitário no mundo privado de cada um. O silêncio e o desconforto passam a ser a única partilha entre ambos.

Morfeu também sorri timidamente e logo os dois se entregam à gargalhada. Um beijo súbito encerra o impasse, iniciando-se num singelo tocar de lábios, convidando a um ardente ritual, dando aos dois uma sensação gostosa que há muito não compartilham. É o primeiro passo para uma nova vida a ser estabelecida pelas mudanças nas atitudes de cada um.

Do livro Arquipélago do Tédio, no prelo

Paulo Marques
Enviado por Paulo Marques em 13/09/2007
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