Na sala de espera lotada de gente em uma UPA-Unidade de Pronto Atendimento da periferia, uma senhora em idade avançada, cochilava pacientemente, esperando a chamada de sua senha.

Na cadeira ao lado, sentou-se um jovem. O rapaz, manipulou o celular, encontrou o APP de música e escolheu uma; abriu a mochila e retirou uma caixinha de música. Ligou o equipamento e acionou o modo “bluetooth”. A partir daí, as Sete Trombetas do Apocalipse de puro “funk” arrasa barraco adentraram com todo o seu esplendor na Sala de Espera da UPA .
 
Mete com força e com talento
Estou ofegante e você percebendo
Bate e maltrata essa puta safada
Quero jatada de leite na cara

O inferno transmutado em música, teve o condão de fazer a idosa dar um salto da cadeira. O susto foi tão grande, que a velhinha quase foi ao chão.

Furibunda, ela olhou para o jovem sentado ao seu lado. Todavia, aquele rapazote de tênis vermelho berrante com os cadarços desamarrados e calças jeans vários números acima; blusão de “moleton” folgado; boné verde limão arregalado virado para trás e espetado no alto do cocuruto, lembrava tanto o bisnetinho querido, que ela pensou melhor, e resolveu falar amavelmente com o jovem que parecia possuído por mil demônios... Tanto que, de olhos fechados, ele balançava e agitava a cabeça e os pés, freneticamente.

Delicadamente, a idosa tocou com a pontinha dos dedos miúdos o ombro do pobre jovem possuído.

Demorou um pouco para ele perceber que alguém o chamava, mas por fim, abriu as pálpebras e fitou a pequenina idosa com os olhos baços e interrogativos.

-Qualé qui foi, “uáuquindédi”?

Timidamente, a idosa comentou:

-Percebi que o jovem rapaz, além de ser meio surdo, é também muito generoso ao dividir seu gosto musical com todos nós. Sendo assim, eu pensei: Uma vez que o Senhor meu Deus, resolveu mandar esse jovem de coração tão bom para perto de mim, é certo que esse jovem generoso não vai se importar se eu pedir para ele colocar uma música do Padre Fábio de Melo para eu ouvir... Pela Graça do Senhor Jesus!

-Qualé, múmia, gastei u’a nota preta cum Cartão de Ispótifái, só prá cunsumí os crédito cum músga c’uns ôtro? ‘Tá lôca, velha?

Sem dar mais atenção à idosa, o jovem voltou a fechar os olhos e ficou balançando a cabeça e os pés... Como sempre, freneticamente.

De repente, não mais que de repente, o aperto de uma garra descomunal fechou-se sobre o seu ombro magricelo. Irritado, o jovem funkeiro abriu os olhos para ver quem incomodava a paz do seu sossego.

De primeiro, ele viu um par de tênis que ficaria folgado nos pés do Chewbacca, amigo de Han Solo, de Guerra nas Estrelas. O calçado deveria ser, no mínimo, número sessenta e dois, com cadarços amarrados. Depois, ele foi levantando os olhos, a cabeça, e por fim, quase quebrou o pescoço para ver uns olhos negros, frios e vazios que o fitavam do alto do Monte Everest para baixo.

O afro descendente que o fitava de cima para baixo, num cálculo modesto, deveria ter, pelo menos, uns dois metros e trinta de altura. Cabelos com tranças rastafári caindo pelos ombros. O negão era grande... Grande e ameaçador! As tranças rastafári balançando ao vento do ventilador de parede, lembravam o alienígena Predador. Da boca do Predador, emoldurada por lábios vermelhos sangue, saiu uma voz metálica, sibilante, porém muito amável:

-O gentil amigo, não vai se negar de atender o pedido da minha vovozinha, vai?

O funkeiro depois de, com muito esforço, engolir a saliva que teimosamente grudava no palato, respondeu:

-Qui’é isso, Dotô? O “pidido” da sua vó, prá mim, é u’a órde!

Incontinenti, o funkeiro virou-se para a idosa, e perguntou amavelmente:

-Qual a músga qui’a sinhóra tem perferença?

A velha senhora sorriu com carinho, fez um muchochinho com a boca, colocou a mão no queixo e fez “hum hum hum”, revirou os olhinhos bondosos, e por fim se decidiu:

-Óóóóhhh, meu filho! Eu acho tão linda aquela... aquela... aquela: “Incendeia Minha Alma”!
O jovem manipulou o APP de música com os dedos tremelicando, pediu desculpas pela excessiva demora, localizou o pedido, e pronto! Padre Fábio de Melo fez sua estreia da Sala de Espera do Posto Médico, com um milhão de decibéis de volume.
Espírito Santo, vinde
Falar em mim
Espírito Santo, vinde
Orar em mim

Vinde curar, vinde libertar
Nossos corações de toda opressão
Vinde transformar, vem incendiar
Traz fogo do céu nesse lugar

Na Sala de Espera onde todos acompanhavam a cena atentamente, ouviu-se um coro celestial:
Gloria a Deuxxxx!

No entanto, como desgraça pouca é bobagem, o jovem funkeiro gemeu novamente com a pressão de duas garras sobre os ombros magrelos. Reprimindo ganidos de dor, ele sentiu as tranças rastafári acariciarem o pescoço e orelha. Com os olhos arregalados, quase sujando a cueca que aparecia por cima do cós da calça, sentiu um bafo de fornalha sibilar em seu ouvido:

-O gentil amigo pode, por favor, baixar o volume para oito ou dez? Deixar bem baixinho? É que vovó sofre de enxaqueca crônica... Eu trouxe a coitadinha até ao Posto, só para tratar da dor de cabeça dela, sabe?

O funkeiro, com um esforço descomunal, conseguiu responder gaguejando um português absurdamente correto:
-Per.. Per.. Perfeitamente, Doutor!
 
Natal/RN-Nov/2018