O VÔO DA MARIPOSA

Balançando sobre uns saltos Luiz XV, Soraya atravessou a rua e acomodou-se no final da fila no ponto de ônibus. Trazia um ar de tristeza estampado na face sofrida, embora fosse bem jovem. Via-se claramente que ela tentara esconder os traços do sofrimento com uma camada de base e pó compacto. Os cabelos em desalinho sofriam a ação do vento que começava a aumentar sob a ameaça de chuva. O vestido longo e desgastado cobria um corpo magro sem mostrar curvas. Nas mãos uma bolsa grande, negra com alguns detalhes de metal acobreado, parecia antiga e bem surrada.

O ônibus surgiu no início da quadra e a fila se alvoroçou. Mesmo alinhados, parecia que todos estavam prestes a provocar um estouro como uma boiada fugindo do fogo na pradaria ressequida pelo sol escaldante. Quando o veículo parou, foi um tremendo empurra-empurra. Espremida no meio da turba, Soraya conseguiu entrar, mas não encontrou assento disponível.

Após longos quarenta e cinco minutos, o ônibus parou e ela desceu. Estava cansada e sem forças para responder um “Oi” dado por um rapaz que passou a seu lado. Mesmo assim, seguiu andando ao som cadenciado do salto do sapato que desafiava a sua coragem de seguir em frente. Depois de mais uns dez minutos, chegou a casa.

Sua mãe a viu passar e imaginou que tudo continuava como antes. Desde que saíra do ultimo emprego, entreva e saía de casa sem um sorriso nos lábios, ou uma palavra amiga. Aquilo já estava virando rotina. Moravam as duas numa pequena casa, herança do falecido que partira muito cedo. A pensão mal dava para pagar luz, água e a alimentação regada, o suficiente para se manterem vivas.

Mariana (era o nome de sua mãe) não conseguia entender o que estava acontecendo. Por diversas vezes tentara um diálogo, mas acabavam discutindo. Lembrou-se da última vez:

- O que foi agora? – perguntou a mãe.

- Estava tudo certo, mas quando descobriram que sou travesti me mandaram embora no mesmo instante – respondeu Soraya.

- Eu já te disse várias vezes, meu filho! Deixa de se vestir de mulher e vai à luta!

Com os olhos cheios de lágrimas, Soraya deixou-se cair na cadeira em completo desânimo.

- Não adianta, mãe! Se eu me visto de homem, eles descobrem logo que sou gay e a reação é muito pior. Nem chegam a conversar sobre o emprego. Na última vez fui humilhado na frente de todos os candidatos.

Mariana terminou de servir o jantar e olhou por um tempo a cabeceira da mesa. Desde que Onofre morrera, ninguém mais ocupara aquela cadeira, mas ela continuava colocando o prato e o talher como se a qualquer instante ele sentasse para comer.

- Vem jantar, filho!

Lembrou-se da implicância do marido com o filho. Já perto de morrer tiveram uma longa discussão por conta da forma de andar do rapaz. Só não foram às tapas porque ela entrou entre os dois. O que ele disse naquele dia nunca saíra de sua cabeça: “Não sei o que eu fiz para não merecer um filho homem. Nem morrer em paz eu posso. Quem vai cuidar de Aninha?”

Deu um longo suspiro. Ele nunca lhe chamara pelo nome. Era sempre Aninha, até nos últimos momentos de vida.

- O jantar está esfriando, Júlio! – gritou Mariana, junto à mesa.

O rapaz juntou-se à mãe, falando ao telefone. A voz rouca e sofrida marcava o seu estado de alma. Segurava o telefone com tanta força que os dedos pareciam fortes garras em torno do aparelho. Ao terminar, largou o aparelho sobre a mesa e colocou um pouco de comida no prato. Sob o olhar preocupado da mãe, revirou a comida enquanto mastigava sem vontade de engolir.

- Coma, filho! Assim você vai adoecer. Mamãe preparou essa comidinha para você pois sei que você gosta.

Sem falar nada, Júlio levantou-se. Nos olhos, duas grossas lágrimas brotaram e impulsivas rolaram pela sua face magra perdendo-se no chão encardido da sala. Foi até a janela e deixou seu olhar desbravar o horizonte que começava a se vestir de trevas. Longe, muito longe, ouvia umas palavras não entendidas. Nem tinha consciência de que era Mariana que falava.

O vulto de uma ponte estendia-se fantasmagórica sobre o rio que ele muito bem conhecia. Brincara muitas vezes nas suas margens, quando criança. Sabia dos seus segredos e da sua misteriosa atração que o chamava tetricamente, no entanto, apesar do pavor, não tinha como resistir.

Resoluta, pegou a bolsa, passou os dedos pelo cabelo e saiu porta afora. O toc-toc do salto do sapato nas pedras do calçamento quebrava o silencio da noite que chegava sombria e misteriosa. Estava frio e uma névoa ocultava a lua cheia, deixando passar apenas uma fraca luz, na sinuosa rua deserta. Enquanto o barulho ia ficando mais distante, seu vulto se perdia na penumbra.

Depois de algum tempo, a brisa foi-se dissipando e a estrutura da ponte crescendo gradativamente parecia um imenso monstro adormecido. Soraya (Júlio ficara em casa para sempre!) parou próximo à ponte e olhou-a intensamente. Depois, voltou-se para a direita e para a esquerda lentamente. Observou cada detalhe como faz um artista examinando sua obra. Tirou o relógio do braço, olhou as horas e em seguida jogou-o num canteiro próximo a uma coluna de concreto.

Em seguida, lentamente, subiu a encosta até atingir a parte superior da estrutura metálica. Novamente lembrou-se de que, quando criança, costumava ficar no meio da ponte observando a correnteza levar galhos arrastados das margens após chuvas torrenciais nas cabeceiras do rio. Postou-se no mesmo lugar de antanho.

Viu que alguém se aproximava, mas não deu atenção. Seu olhar estava fixo nas águas barrentas que corriam lá embaixo.

- Oi, queridinha, que surpresa!

Voltou-se de repente, ao ouvir aquela voz. Era conhecida. Viu, à sua frente, uma figura que sempre encontrava na frente do Cine Rex. Era lá onde procurava afogar suas frustrações ao ser preterida nas entrevistas de emprego. Depois dos desabafos, via que todas carregavam os mesmo problemas.

- Oi, Sandra.

- O que você está fazendo aqui? Pode chover a qualquer momento.

A lua estava escondida por uma escura nuvem. Realmente, podia chover de imediato.

Abrindo a bolsa, Soraya tirou um batom vermelho, retocou a pintura dos lábios, depois colocou um pó nas faces e por último usou uma escova para baixar os cabelos que o vento deixara revoltos. Por fim, fechou a bolsa e a entregou para Sandra, que, sem entender o que estava acontecendo, presenciou o vôo solene de uma mariposa na penumbra da noite sobre o Parnaíba.