BRECHA DIMENSIONAL
 
 
 

Letras. Enfileiradas, ordenadas, desenhadas. Por todos os cantos e lados, um mundo misterioso.
 
Baldo vê os pequenos símbolos que o fascinam nas placas, nos livros; no rodapé da tela de cinema. Nas embalagens dos produtos que ficam naquele lugar enigmático, que sua mãe chama de cozinha. Nos anúncios da rua do comércio.
 
Qual o  segredo das letras? A pergunta vem nas suas divagações, quando deita na grama e olha para as nuvens.
 
O menino gosta muito que alguém leia para ele. A legenda do cinema; os contos dos livros de fábulas; qualquer coisa. Mas as pessoas são ocupadas; nem sempre estão por perto.
 
- Depois eu leio de novo. – Dizem sua mãe ou seu irmão, ao menos uma vez por dia.
 
Baldo entende. E não entende. Aceita. E não aceita. Então desce para brincar, no terreno de sua casa. Que se transforma, quando ele começa a viver suas outras vidas.
 
Reinos fantásticos se materializam naquele pedaço de quintal. Ele, os amigos, sua irmã e - vez ou outra - o irmão mais velho, salvam o universo toda semana, nos incríveis cenários das palavras do sonhador. Ditas e muito bem ditas. Ou malditas: o medo entra nas aventuras para ser combatido. Isso dá emoção e calafrios na molecada.
 
Guerreiros, fantasmas ou monstros são enfrentados ou encarnados pela turma todos os dias.
 
O jovem criador de narrativas nunca é o grande mocinho, nem o vilão. Gosta do papel coadjuvante. Assim pode continuar mostrando aos amigos para onde o enredo vai.
 
Mas quando o que fala mais alto pra turma é o futebol, Baldo some. Antes que o convidem, mergulha inteiro na sua dimensão secreta. Sozinho ou com a maninha Vitória, a mais paciente com ele.  
 
Quantas aventuras surgem e somem! Brincar sobre elas é importante: Um momento especial pra marcar. Que poderá ir embora, nas areias do tempo. Por isso a ânsia em entender os símbolos mágicos que todos chamam de letras. O que sua imaginação poderia fazer, se as dominasse? Histórias lidas no seu tempo, não no dos outros. Ou construídas, gravadas e lembradas.
 
Sua mãe perde a conta das vezes em que a arrumação do quarto não termina, ou que o filho não aparece no almoço, porque um objeto achado o faz  pensar, viajar, sumir. O que é um almoço frio, um quarto bagunçado, diante do destino do Cosmos ou do fantasma do espelho?
 
O menino de quatro anos irá para a escola um dia. E até lá? A vida o convida para outras coisas, mas ele não consegue ir. As histórias sempre o chamam pra terra que ninguém mais vê.
 
Às vezes, ser assim deixa adultos preocupados.
 
- Já viram se está tudo certo na cabeça dele?
 
- Não é anemia, não?
 
- Pra mim, esse gurizinho tem vermes!
 
Seu pai o leva ao médico. Sua madrinha lhe dá uma bola. Todos tentam o que podem. Mas Baldo prossegue Baldo.
 
Até que algo acontece: Um dia, nos mapas do pai, o garoto cutuca o país-bota e lê em voz alta:
- Itália.
 
A família está incrédula. Testa mais nomes no mapa. E são lidos.
 
Em meio à surpresa, Baldo se esbalda.
 
As letras em que passa o dedo começam a se juntar e fazer sentido na cabeça. Portas se abrem. Fronteiras são vencidas. O infinito é visitado. O menino descobre o que tem lá e como fazer para buscar.
 
Palavras nascem no papel, parindo frases. Dão rosto a sagas, seres, coisas, tudo.

Agora ele enxerga. Agora ele sabe. E pode contar pras pessoas: Baldo quer ser escritor.