Autoquíria (Episódio da viagem por São Paulo)

[A ser incluído entre os capítulos XIV e XV]

Desde que iniciei a redigir estas memórias há tantos anos, não pretendia revisitá-las, alterando um único iota que fosse – quod scripsi, scripsi. As páginas deste diário deveriam servir como um memorial a duas de minhas maiores perdas: a mulher a quem amei e meu idealismo juvenil – se bem que uma se agrega à outra, andando de mãos dadas. No entanto, sei que algum dia morrerei, e uma caridosa alma remexendo por meus papéis, crendo (muito erroneamente, decerto) que fará um grande favor às Letras dando a lume meus dejetos, há de me transformar num Kafka. Portanto, peço desde já que não se queime minha obra ante a inevitabilidade de minha morte; publicada, há de destruir a si mesma vagando só e errante em meio a pilhas e mais pilhas de tantos outros livros.

Antecipando-se à morte, zombando de sua lentidão mas apreensivo ante sua certeza, aproveito o ensejo para fazer alguns remendos a estas páginas juvenis, acrescentando alguns detalhes que podem elucidar ou entreter ainda mais aquele que se dispõe a ler, sem que a Experiência silencie a Inocência, deturpando um documento histórico que demonstrava minhas convicções de então.

Há uma lacuna entre este capítulo e os seguintes, que à época optei por omitir por não ser corajoso o bastante para recordá-la – por mais que servisse de ponte entre os últimos suspiros de minha adolescência e minhas longas e insólitas viagens. Hoje, comparada a todas as outras vezes em que quis encontrar a Morte, não passou de um breve folguedo.

Se decorreu algum tempo depois de haver eu desistido de procurar por Nelly em nosso usual banco do parque; se me recordo bem, cinco dias antes de eu partir de São Paulo. Era alta madrugada, e não conseguia dormir; minha memória repassava em loop constante meu último encontro com Nelly, que não fora um dos melhores – as coisas impronunciáveis que disséramos um ao outro, no entanto, irão ao túmulo comigo, sórdido segredo que jamais deveria ser lido por um público de gente de bem. Meu humor ia de mal a pior, e podia ver que até mesmo T… começava a se cansar de mim: conversávamos cada vez menos frequentemente e, quando muito, nos víamos tão só durante as refeições. Seus conselhos haviam se esgotado todos, sem que eu quisesse seguir a qualquer um deles, pois não trariam minha amada de volta. Creio que seria despedido de sua morada logo após o nascer do Sol, não fosse por minha decisão de cometer suicídio.

Hoje, ao me recordar de minhas emoções de então, não posso evitar de rir, tendo a Experiência asfixiado a semimorta Inocência, mas há tantos anos não teria vergonha de admitir que seria capaz de morrer por amor. Se eu morresse em São Paulo, minha querida poderia pisotear meus átomos esparsos tranquilamente, e qual um espírito incorpóreo haveria eu de envolvê-la em amplexos mil à guisa de perdão. Mesmo que atualmente tenhamos feito as pazes e eu viesse a cogitar me matar em vários outros lugares tão, ou até mais belos que São Paulo, às vezes fantasio em retornar a São Paulo tão somente para morrer – mas, voltando ao que interessa, só morrer por amor sanaria minha dor, e fugi de casa ambicionando tal desígnio.

Caía uma garoa irritante, e fazia frio. O lugar mais pitoresco que conhecia, e de onde gostaria de morrer, era o Viaduto do Chá – passara por perto ao menos umas duas vezes, mas ainda não tivera a chance de subi-lo. Ficava relativamente longe da casa de T…; indo a pé, calculo que levaria quase três horas de caminhada. Não me importei, pois gosto de andar – e como seria minha última caminhada, bom seria fazer com que tirasse o máximo proveito. Ignorando a garoa que embaçava meus óculos, segui ziguezagueando pelas ruas, oprimido pela sensação de que jamais conseguiria amar São Paulo como até então amara; os lugares que frequentava, as ruas pelas quais passava, tudo parecia transmitir uma aura de hostilidade que me deixava ainda mais espiritualmente adoecido. Era quase como se a própria cidade me apontasse um dedo à cara, me recriminando por tudo aquilo que cometi. “Tolo! Tolo! Mas o que foi que você fez?”, ecoavam as vozes invisíveis das ruas e dos edifícios em meus ouvidos; e eu seguia andando, mudo, sabendo que seria em vão tentar justificar meus atos de qualquer forma.

Estudava meus arredores – mais por querer ter uma última visão do mundo que me cercava que por apreço. Sendo uma madrugada nada convidativa como aquela, pouca era a atividade. Um carro, volta e meia, cortava minha frente; um cachorro latia, protegendo seu lar de algum perigo imaginário; tentei dar uns afagos num gato que, acuado, se refugiava numa caixa de papelão; vários vagabundos dormiam envoltos em camadas de cobertores ou em abrigos improvisados de sucata – deparei-me com um que me pediu dinheiro – nada tinha eu a lhe dar. Do outro lado de uma determinada rua, vi uma mulher vestida em andrajos, sentada defronte a um muro e girando a cabeça em estado total de estupor – entorpecentes, sem dúvida, pensei. Lembrei-me daquele poema de Blake; as “marcas de fraqueza e de pesar” de meu próprio país já me bastavam para que fosse querer buscar as de Londres. (Mal sabia eu então que acabaria conhecendo Londres tanto tempo depois, após uma chegada deveras desagradável às praias de Albion…)

Com uma pontada de dor me estancando os pés, cheguei a meu destino: via-me no topo do áureo Viaduto do Chá, completamente a sós. Nenhuma alma piedosa haveria de interromper-me, proferindo as mesmas velhas platitudes sobre como viver é bom, insuflando meu peito com as mesmas falsas esperanças de sempre – até onde o percebia, poderia espatifar meus ossos ali mesmo, livremente! Era uma bela madrugada para conhecer a Morte! Momentaneamente, a dor da fadiga deixou-me, e fui fazendo os preparativos para meu derradeiro salto.

Abaixo de mim, tão somente o concreto. Um mórbido calafrio me passou pela espinha quando tentei vislumbrar em minha mente meus restos mortais esparramados rua abaixo; uma sensação de repugnância misturada a curiosidade, que não sentia desde a última vez que tivera um breve rendezvous com a Morte, em minha cidade natal, quando tinha, se bem me lembro, 12 anos incompletos. Num de meus passeios, me deparei com um pobre gato que havia sido atropelado e lutava pela vida se debatendo em seu próprio sangue; um de seus olhos saltava para fora de sua respectiva órbita, estufado feito um globo. Por mais que o desafortunado animal me transmitisse muito nojo e pena, e quisesse desviar meu olhar, não o conseguia, e carreguei até então este quadro macabro nas profundezas de meu subconsciente, apesar de, com o passar do tempo, ter contemplado tantos outros quadros piores.

Tinha pouco mais de 20 anos então, ia refletindo, e constatei que nada tinha que me motivasse a aguentar mais 20. São Paulo nada mais poderia me oferecer, pois aquilo pelo que mais almejava eu próprio o destruíra – jamais veria aquela garota novamente, e não conseguiria amar a outra pessoa que não ela; estas próprias memórias provando não só a mim como a meu leitor que não me enganei em meu julgamento. Enfadara a um de meus ídolos da juventude com minha presença, aquele que me abrira as portas de sua casa e seu coração no auge do entusiasmo e que agora só esperava a ocasião e escolher as palavras certas (ou talvez nem perderia seu tempo escolhendo-as; me diria de forma direta poupando os eufemismos) para me mandar embora de volta a meu frígido lar, em meio ao seio infecto de uma família que nunca soube me amar como necessitava ser amado. Desperdiçara meus melhores anos escrevendo para que ninguém lesse, e sentia que todos aqueles que outrora me disseram que minha obra era de fato boa mentiram descaradamente. Sem amigos, sem família, sem um lugar para pertencer e sem aquela a quem amava, era vão seguir existindo, e não precisava monologar internamente por muito tempo para me convencer do contrário. Após dar um último olhar ao longínquo chão, me obriguei a saltar – mas uma visão perturbadora me desconcertou.

De lá de baixo, da rua que até então se via miraculosamente deserta, um vulto pequenino surgira sabe-se lá de onde; parecia encarar-me com certa avidez – ou se compadecia de mim ou unicamente tinha curiosidade de ver como eu ficaria após me tornar uma papa amorfa e irreconhecível naquele chão de concreto. Devido à altura elevada não conseguia discernir nenhum contorno daquela figura, mas inexplicavelmente sentia seus olhos me fitando – brilhavam mesmo à distância, com uma centelha gélida e metálica. Não eram os olhos doces e tristonhos de Nelly: mais pareciam os de um tigre sedento por uma presa.

Cruzamos, então, nossos olhares por um bom tempo, que seria incapaz de calcular tão hipnotizado estava. Aqueles olhos pareciam ocultar em si algo que sentia que devia ter – só não sabia o quê. Ao mesmo tempo em que aparentavam me desafiar para que pulasse, também imploravam para que não o fizesse. De repente comecei a me sentir zonzo, como se alguém me cravasse garras no cérebro vasculhando por algo – não conseguiria descrever a estranha sensação nem mesmo hoje, tantos anos depois e tão mais controlado, mas me era impossível parar em pé. Aqueles olhos giravam em turbilhão ao meu redor, e quanto mais os perseguisse, mais não saía do lugar. Desde então passei a ter pesadelos com eles, acordando suando a bicas, até finalmente compreendê-los na Ponte Carlos…

E foi assim que minha primeira tentativa de suicídio viu-se frustrada – se para melhor ou para pior, não sei se saberia afirmar com certeza. Penso que desmaiei, pois ao acordar (agitado por um par de mãos) o Sol já raiava e São Paulo retornara à atividade incessante de sempre. Recuperando os sentidos, vi que uma pequena multidão se formara a meu redor; um cortês senhor fora quem me acordara, e após perguntar-me coisas das quais não lembro e eu responder-lhe bem ou mal (igualmente esqueci-o), o instruí a me dar uma carona de volta à casa de T…. Lá chegando, me deparei com o querido mestre, aparentando preocupadíssimo – retribuí seu afeto dizendo que, no dia seguinte, voltaria para minha cidade. Fiz as malas e, chegado o dia combinado, me despedi um tanto quanto secamente de T…, para nunca mais revê-lo.

Sem percebê-lo, aquele par de olhos iniciou minhas viagens, e hoje os bendigo tanto quanto os maldisse; mas tudo a seu tempo.

(Setembro de 2024)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 06/11/2018
Reeditado em 03/09/2024
Código do texto: T6495750
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