Um longo caminho pela frente
"Mesmo não sabendo o que queremos, ainda assim somos responsáveis pelo que somos." Jean-Paul Sartre
O carro estava a cento e vinte por hora. Normal. Mas, para quem estivesse com uma dor de cabeça como a que ele estava, ainda que estivesse andando nas nuvens o mal-estar o acompanharia. “Será que se eu vomitar, o ódio também sai de mim? ”, Carlos pensava enquanto a brisa farfalhava seus cabelos. Podia pedir para Douglas que trocasse de rádio ao menos, pois aquelas músicas sertanejas lhe davam dor de cotovelo. Desistiu porque sabia que era difícil encontrar outras rádios que não tocassem este tipo de música àquela hora da tarde.
Passavam por ali quase todos os dias. Iam e voltavam no trajeto entre cidades. Colhiam notícias. Já nem atentavam mais para a rotineira paisagem: pastagem rasteira, capim e áreas de cultivo se intercalavam na planície triste. Enquanto Douglas dirigia e falava ao celular, Carlos olhava para fora do carro como quem olha para o céu procurando alguma coisa, qualquer coisa. Subitamente, um baque e o carro trepida em velocidade. Intuitivamente os dois se agarram ao cinto que não usavam.
-O que foi isso?
-Não sei, disse Carlos, com o rosto contorcido de tédio ou cansaço.
A pista se estendia por alguns quilômetros e podia-se ver a fila de barracos dos sem-terra que a acompanhava até a curva que ficava em um declive. Depois dessa curva há uma espécie de bar. Uma boate rural.
O carro para no pátio como se já conhecesse o caminho. Os dois descem descompassadamente. Douglas observa o amassado na lateral e faz cara de nojo. Carlos respira aliviado como se estivesse ficado o tempo todo com a cabeça dentro d’água. Assim que adentram o local, Douglas dispara:
-Tereza, meu amor, movimente esses quadris e traga uma cerveja aqui pro seu bem!
-Só se for agora, querido! E o seu colega aí, vai beber o quê?
As paredes de madeira do local são pintadas de branco e envernizadas o que lhes dão um ar de limpeza e claridade. O balcão é feito de pinho e todo ele é coberto de pequenas garrafas que estão ali como amostras-grátis para os clientes habituais. Tereza, a atendente, cantarola na cozinha enquanto procura os copos americanos.
-Vou lá fora fumar...sozinho.
-Pode fumar aqui dentro, se quiser.
A frase veio de uma boca grande e rubra. A voz era a de Lucíola uma senhora de aparência imponente que trazia um sorriso bonachão e um par de brincos de argola que eram suas marcas registradas. Conhecia há muito o jornalista, desde os tempos em que este era menino e andava por aquelas bandas a procura de diversão com as “chicas” que a dona Lucí trazia da Bolívia.
-Dá aqui um abraço apertado, assim ó!!! Viu que bom?
-Tudo o que é bom nem dura...
A Zona Rural, era como os homens chamavam a casa de Lucí e suas dependências. Na verdade, não passava de um pequeno aglomerado de pessoas reunidas por interesses comerciais e que se mantinham interligadas ainda, por questões culturais. Por exemplo, ao redor de Lucí e seu bar estavam duas residências rústicas feitas de madeira de alvenaria, um açougue, uma farmácia, uma horta comunitária de tamanho médio, um mercadinho e uma igreja evangélica.
-Aquele seu primo não curte gente?
-Ele não curte gente como a gente.
Carlos observa a marca de sangue na lateral do carro. Deve ter sido um cão pequeno ou algum lobinho. Se fosse um animal de porte grande ou médio teríamos capotado o veículo. Menos mal, pensou o rapaz, detestaria morrer ao lado de alguém que não amo. Tragava lentamente o Marlboro enquanto se perdia em pensamento. A cara mirava bem à frente e o pensamento dava pulos rápidos e certeiros no passado.
-Ele é sempre assim ou fica assim quando anda com você?
-Não o reconheço, nem quando sai comigo.
Do outro lado da pista e de frente para os lugares mencionados havia uma escolinha, três residências particulares e uma pensão temporária. Além de serem clientes umas das outras as pessoas que residiam nesses locais tinham laços de empatia e consanguinidade: geralmente eram tios, tias, sobrinhos, compadres e comadres. O dinheiro e os clientes vinham de fora.
Era um vilarejo, mas com tendências progressistas. Os mais otimistas acreditavam que logo seria um município onde os políticos pululariam como pulgas em um cão idoso.
-O que há de errado com Carlos?
-Para ele está tudo errado.
Alheio ao que se falava sobre ele, Carlos pensava no seu atual emprego. Era um assessor. Grande coisa. E só o era pois entendia de computadores e sabia inglês. Viajava sempre ajudando, às vezes, a tirar fotos, fazer resenhas esportivas, postar conteúdo no site do jornalista. Pouco falava com ele. Não tinha saco para intimidades. Seus desabafos eram como bombas caindo nos ouvidos de quem o escutava.
Nas vezes em que foi perguntado respondeu que sim, que viera pro interior procurando paz, que era corinthiano, que tinha conta na Caixa, que era católico, que perdera o pai para o mundo e o avô para a morte, que tinha mãe que o amava, que era confiável, mas era amargo, e adquiriu esse amargor no mundo desde pequeno e se esqueceu ou não quis melhorar. E mais: disse que gostava de ser assim e que não gostava nem um pouco quando alguém queria mudá-lo.
A tarde sumia lentamente. Na pista, vez por outra passava um carro de passeio. Era comum os velhos caminhões boiadeiros passando devagar em direção à cidade grande. Um ventinho da tarde começou a soprar.
Carlos coçava distraidamente o queixo e sonhava com a noite que se avizinhava. À noite tudo é possível, imaginou. Inclusive dormir e esquecer que preferia estar a essa hora a quilômetros dali. Mas, raciocinou que não dá pra viver sem trabalhar e não se pode trabalhar em paz onde há um milhão de pessoas torcendo pra você ficar desempregado, enquanto sofrem e suam no seu emprego e você está no olho da rua. Pensava nisso tudo quando ouviu:
-Hei moço, venha se despedir!
-Já vou, senhora...
Apertou a mão de Lucí como quem aperta uma maçaneta: rápido e seco. Balançou a cabeça e saiu. Douglas sorriu e abraçou a dona da casa. Deu um tchau para Tereza, que estava na sala, e saiu pisando macio. Em seguida, adentraram no Audi e partiram. Já passava dos oitenta quilômetros por hora quando se aproximavam do acampamento dos sem terra. Douglas dirigia calado e seus olhos miravam a pista, reduzindo a contragosto a velocidade. Carlos olhava a fila de barracos de um lado e do outro da rodovia. Pareciam casas de João-de-barro com suas portas únicas.
-Veja só o que atropelamos!
-Que você atropelou!
Um cãozinho preto e magro estava estirado no acostamento. Três crianças descalças levavam o animal na direção de um dos barracos. Não dava para ver os seus rostos. Não se sabe se choravam ou se xingavam o carro. Douglas não olhou para eles. Carlos olhou mas não viu. Apenas pressentia uma espécie de ânsia esmurrar seu estômago.