Tomás Mauro

“Aprendi que um homem só tem o direito de olhar um outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se”. Gabriel García Márquez

Entre o campo e a cidade, em uma pequena propriedade próxima da rodovia, reside um dos inúmeros exemplares dos cidadãos que compõem a fauna local, apesar de ser diferente dela. A essa hora da manhã, depois de retirar seu chapéu e limpar com a manga da camisa o suor da testa, o nosso amigo confere o nível da gasolina de seu velho Chevrolet, entra no carro e dá a partida.

Sai vagarosamente dos limites de sua propriedade e adentra a pista. Antes de pisar fundo no acelerador ele pensa: “Hoje, quem sabe, poderei me divertir um pouco”. O carro velho ganha velocidade e ele percebe que chegará logo à cidade, se o veículo não se desmanchar na pista esburacada ou nas curvas acentuadas do caminho.

Durante boa parte do trajeto a rodovia margeia as terras de sua propriedade. Seu sítio limita-se com o rio ao sul, com a pista ao leste, com a periferia da cidade a oeste e com densa floresta de preservação ambiental ao norte. Ou seja, suas terras são os limites físicos do crescimento territorial da cidade. Já lhe foram feitas inúmeras propostas para que a propriedade fosse vendida. Ele declinou de todas, mas sabia que mais cedo ou mais tarde teria que vendê-la.

Não era um avarento em relação à propriedade, mas não pretendia entregá-la nas mãos sujas e criminosas de determinadas pessoas. Ou vendia para uma pessoa de bem ou seguraria o máximo possível até que lhe fossem tomadas, de forma legal.

Há alguns anos fora chamado de louco. Sua ideia era muito simples: resolveu ceder uma parte de suas terras ao redor da cidade para que as pessoas da periferia pudessem plantar e colher seus próprios alimentos. Proliferaram as hortas comunitárias e a criação de animais de pequeno porte: aves, porcos e coelhos. Não cobrava nada das pessoas e, ao mesmo tempo, mantinha suas terras produtivas. E suas fronteiras seguras.

Fez isso durante três anos. Foram os melhores três anos da vida dessas pessoas. Para o nosso amigo foram anos de desprezo e esperança. Os proprietários locais perderam muito da mão de obra barata e o exemplo dele era, no mínimo, imitável. Os pobres acreditavam que possuir uma terra, sem pagar imposto, era o paraíso.

Na cidade, seus desafetos, diziam que ele era um homem ridículo; também cochichavam que era um homem estranho. Ele não se importava com essas picuinhas. Sabia-se ridículo, por isso ria de si mesmo; sabia-se estranho quando chegava a discordar do que havia feito antes. Acima de tudo, sabia que era um homem que pensava: nos outros e nele próprio. Os rótulos que lhe emprestavam caíam sempre por terra diante do homem que ele era.

Os pneus traseiros chiaram no asfalto. O cheiro de borracha queimada adentrou no estabelecimento antes mesmo que Tomás Mauro pudesse descer de sua velha caminhonete. Assim que pulou da cabine, foi recebido com um frenético aperto de mão e um abraço de boas vindas.

-Meu amigo, o que o traz aqui?

-A necessidade como sempre, camarada!

Enquanto a balconista examinava a lista de mercadorias, Tomás se dirigiu para os fundos do comércio acompanhado do velho amigo. Este já o conhecia desde os tempos de escola e aprendeu a confiar no outro como só podemos confiar em nossa própria mãe. Intuiu que Tomás não estava em seus melhores dias, pois viu que ele se dirigira diretamente à garrafa de licor de cachaça em vez de se dirigir à costumeira garrafa de café.

Tomás Mauro sentou-se no velho banco de madeira, pôs o chapéu sobre a mesa e desandou a segredar com o amigo. Aonde vamos parar, dizia ele. Quase todos os dias encontro na rodovia, ou aqui mesmo na velha rodoviária, pessoas desempregadas, ou o que é pior, pessoas sem nenhuma oportunidade de emprego, dizia isso com o rosto lívido de preocupação. O outro ouvia, tentando compreender de onde diabos provinha a revolta dele, pois era sabido que não passava fome e também não praticava caridade.

Tomás, já de posse da garrafa de cachaça, tomava ares de filósofo pensativo e bebericava lentamente. Lá na frente, a balconista assoviava uma música sertaneja enquanto ajudava o outro empregado a carregar as sacolas de compras para a carroceria do velho Chevrolet.

Após conferir as mercadorias e assinar o cheque, Tomás retorna para os fundos do estabelecimento. Lá, o curioso dono do mercado fuma olhando para as próprias mãos. Dizia que entendia a revolta do amigo, pois veja, disse ele, já diminuiu o volume de vendas e aumentou o fiado. Pessoas desempregadas não deixam de comer. Tomás baixou a aba do chapéu e ficou observando os primeiros barulhos da cidade. O comerciante desabafava:

-Não se fazem mais homens como antigamente!

-Nada mais é como antes!

Meia hora depois, a velha caminhonete deixava o supermercado carregada de gêneros alimentícios e algumas caixas de cerveja. Ao volante, o motorista conduzia vagarosamente o veículo. Tinha algumas certezas: a três quadras dali poderia parar, estacionar a caminhonete na garagem da casa e passar o restante do dia e boa parte da noite nos braços quentes e entre cachos de cabelos sedosos e de bom cheiro.

make
Enviado por make em 31/10/2018
Reeditado em 30/05/2019
Código do texto: T6491006
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