Sem onda

Fui ao apartamento de Celia, minha vizinha da frente, deixar minha gata malhada, Nala. Eu iria passar uma semana em Toronto, por conta do trabalho, e Celia, que assim como eu morava sozinha, não se importava de cuidar eventualmente da pet.

- Já percebi que você gosta de animais - comentei certa feita. - Por que não arruma um pet pra te fazer companhia?

- Nada contra bichos de estimação, mas na fase atual da minha vida, prefiro mais a companhia de gente - declarou ela, risonha. - Nala é muito sociável e bem comportada, mas hospedá-la na minha casa vez por outra, já supre a minha carência de afeto em quatro patas.

Não insisti, até porque se ela finalmente resolvesse ter uma pet própria, talvez Nala perdesse o espaço gratuito. E lá fui eu, com a gata na sua caixa de transporte, o saco de ração, o arranhador, os brinquedos favoritos... ainda bem que era só abrir a minha porta e entrar na porta do apartamento em frente. Celia aguardava de pé na sala, enquanto eu colocava os objetos num canto. Nala, que conhecia o ambiente melhor do que eu, pulou para o sofá e instalou-se lá sem cerimônias.

- A dona da casa! - Exclamou Celia, sentando-se ao lado da gata e fazendo carinho entre as orelhas dela.

Foi então que vi a revista sobre a mesinha de centro. Como sou formada em design gráfico, não pude deixar de ser atraída pela capa, um delicado arranjo de flores e folhas no estilo ikebana. Era bem... luxuosa.

- Que revista é essa? - Indaguei, curiosa. - É sobre cultura vegana?

- É a "Broccoli"; sobre cultura, mas não exatamente vegana. Pode pegar... é grátis - disse Celia com um sorriso no canto da boca.

- Grátis? - Repeti, incrédula. A qualidade óbvia daquele material certamente não saíra barato.

- Grátis - insistiu ela, sem parar de fazer cafuné em Nala. - Pelo menos, aqui em Portland. Para outros lugares, cobram uma taxa de remessa postal.

Peguei finalmente a revista, que estava de cabeça para baixo em relação a mim, e pude ler a frase impressa em letras pretas quase no rodapé: "uma revista para amantes da cannabis".

- Uau! - Foi tudo o que consegui dizer. - Eu não sabia...

- Que eu aperto unzinho de vez em quando? Ajuda a relaxar, Lucy...

Celia, a propósito, parecia tão ou mais relaxada do que Nala, posando como uma mini-esfinge ao lado dela. Disfarcei meu embaraço, e comecei a folhear a revista. O acabamento era mesmo de primeira qualidade. Diagramação, fotografias... e as matérias não tinham uma vinculação óbvia com a cannabis, apesar da afirmação feita na capa. Tudo era muito sutil. E estiloso.

- Surpresa em descobrir que sua vizinha de porta é uma maconheira? - Riu ela.

- Você diz isso de um jeito... - murmurei. - Mas certamente não preenche o estereótipo da mulher que fuma baseado...

- Entendo o que quer dizer. Não me visto como uma riponga, frequento academia, e até mesmo votei no idiota do Donald Trump. Sim, essa sou eu - declarou ela, me olhando por cima dos óculos sem deixar de sorrir.

- Desculpe... não quis ser invasiva - consegui dizer por fim, recolocando a revista na mesinha.

- E não foi. Sobre esse assunto, nada tenho a esconder. O uso privado de cannabis está liberado no Oregon, como deve saber...

- Sim... eu estou a par disso, Celia - assenti, olhando para Nala.

Minha vizinha também olhou para a gata, e depois para mim.

- E para complementar uma conversa que tivemos tempos atrás, eu não tenho um animal de estimação porque não acho justo expô-los à fumaça, seja de cigarro, seja de cannabis. Pode ser tóxica para animais domésticos.

E notando meu desassossego, complementou em tom mordaz:

- Durante todo o tempo em que a Nala for minha hóspede, vou me abster de fumar meu cigarrinho...

- Se isso for lhe causar incômodo, posso levá-la para um hotel de animais... - declarei, olhos baixos.

Celia deu uma risadinha baixa.

- Sossegue, Lucy! Cannabis não se consome apenas como "brócolis", para ser fumada. Leve a revista, você vai gostar.

Fiz isso; e sim, gostei muito do que vi. O que não me tornou numa consumidora de cannabis, a propósito.

- [27-10-2018]