Conto das terças-feiras – O vigia das saudades

Gilberto Carvalho Pereira. Aracaju, SE, 16 de outubro de 2018.

Uma das atrações turísticas da cidade de Fortaleza é a sucata do petroleiro “Mara Hope”, resultante do incêndio ocorrido em suas instalações quando ancorado em Port Neches, Texas, para reparo. Ao ser transportada para Taiwan, para ser desmontada e vendida como ferro velho, o seu rebocador, Sucess II, de passagem ao longo das praias cearenses, apresentou problemas mecânicos, tendo que ficar ancorado no Porto do Mucuripe, em Fortaleza. No dia 6 de março de 1985, a sucata do “Mara Hope”, devido ao forte temporal e maré alta, teve suas amarras soltas do rebocador e a embarcação derivou 1,6 km, até encalhar num banco de areia nas proximidades da Praia de Iracema. Após diversas tentativas de recuperação sem sucesso, ela foi dada como perdida.

O velho marinheiro, o prático leigo Firmino da Silva, conhecido como o “cachorro da praia”, de sua janela observava, quase sem enxergar, aquela enigmática figura do “Mara Hope”. Como as ondas daquela praia, sua já fraca memória vem e vai, deixando-o bastante confuso. Os lampejos lhe trazem ora momentos de alegrias, ora momentos de profunda tristeza. Conversando sem parar com aquela imagem, ele grita ele ri, ele chora. Todos os dias ele está lá, a partir das seis horas, depois de um parco café da manhã servido por um fiel amigo de “batalhas navais”, em tentativas de trazer as embarcações ao píer do porto, de maneira segura e rápida. Debruçado no peitoril da única janela de sua pequena casa ele dirigia, imaginariamente, as manobras para que tudo corra bem e o petroleiro não sofra avarias, o que lhe custaria caro.

Seus devaneios mentais originaram-se de um sério e real incidente durante uma arriscada manobra de aproximação, quando uma embarcação que o “cachorro da praia” orientava a ancoragem veio a abalroar com outro navio. Não ficou claro o erro cometido por Firmino, mesmo assim ele ficou privado de exercer sua profissão, sendo-lhe cancelado o certificado de habilitação daquela data em diante. Era o único ofício que conhecia. Sem saber o que fazer ficou zanzando por alguns anos. Tentou ser pescador, vendedor de peixe, trabalhador de bar na orla, nada lhe satisfazia. Cada tentativa só lhe trazia angústia e, nessa busca ingente, passou a sofrer crises de depressão.

Pobre e sem seguro social, não recebia assistência psiquiátrica, seus dias ficavam cada vez mais nebulosos, chegando a passar fome, sendo muitas vezes, socorrido por vizinhos caridosos que, com pena daquele homem que um dia fora corajoso, traziam-lhe comida.

Certa manhã, ao abrir a estreita janela de sua casa, deparou-se com aquela imagem na praia. Para ele, era uma embarcação querendo se aproximar do porto. Imediatamente correu para a praia e nadou até a sucata do “Mara Hope”. Sua alegria era tanta, que Firmino da Silva voltou a sorrir, a pular de alegria, a se sentir disposto, passou o dia todo indo de um lado para o outro, entre as diferentes dependências do antigo petroleiro, falando e dando ordens aos seus comandados imaginários. Sentindo-se a autoridade máxima da sucata, já que suas ordens não eram contestadas, “cachorro de praia” tomou posse definitiva daquela embarcação já imprestável para navegação.

A partir daí todas as manhãs, nadava até a embarcação encalhada e orientava a sua aproximação ao local que, na sua cabeça, era o porto seguro. Agindo como se comandante fosse, passou a expulsar as pessoas que procuravam a sucata, para dela saltarem no mar. Também não permitia qualquer intruso que ali chegasse para pescar, pois aos poucos o entorno do navio afundado vinha se tornando local de agregação de vida marinha.

Fez isso por vinte anos, até seus olhos adquirirem opacidade parcial do cristalino, que o impedia de enxergar claramente. Sem condições de nadar até à sucata, passou a fazer suas orientações diretamente do seu posto de observação. Nos raros momentos de lucidez, sua memória tornava-se ativa e o prático-náutico vivia a verdadeira felicidade, a saudade daqueles tempos lhe acalentava a alma, mas logo tudo voltava à tristeza, seu rosto se transformava, e então se debatia e rasgava suas roupas. Era necessário que alguém o acalmasse. Os que desconheciam seu drama e que por ali passavam, exclamavam que o “cachorro da praia” endoidara de vez.

Um dia, que não vai longe, “cachorro da praia” finalmente sucumbiu, mas seu falecido rosto apresentava sinais de alegria e placidez como se estivesse fazendo a sua última manobra em mar calmo e junto a comandados disciplinados e competentes.

A extinta embarcação é hoje um curioso ponto turístico da cidade, que pode ser observado de diferentes posições da orla.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 16/10/2018
Reeditado em 16/10/2018
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