Cicatrizes
As marcas eram profundas, embora invisíveis. Indolores, mas latejantes como chagas não curadas.
-Tem que ser assim... só que isso... isso...
Lauro buscava a palavra certa, e ela não era difícil de se encontrar. O certo naquele momento era apenas sentir.
-Isso dói...
Ela o deu as costas por seguir em frente...
Tempos atrás, algo parecido havia acontecido e ele acreditou que nada seria difícil depois que tal tempo passasse. Como uma folha deslizando sobre a correnteza caudalosa que sabe que não importa o que ela queira ela irá para onde tiver de ir, ele decidiu render-se ao mais íntimo de sua tímida dúvida ansiosa. Só que os tempos de outrora perto dos de agora não são nem de longe parecidos com o que o presente se tornou quando quis ser o que ainda será quando se deixa de ser o que se foi... tudo estava muito difícil
-Mas... ninguém precisa saber... apenas uma testemunha é suficiente pra garantir que doa o que precisar doer...
Sim. Era preciso que o castigo fosse aceito, mesmo que não houvesse crime maior que a busca pelo si mesmo. A busca pelo si que, se for encontrado, torna-se o que é de fato. E o que se é de fato?
Lauro juntava as coisas que seriam devolvidas e a cada peça que suas mãos tocavam, o tocava a magia de um antes agora envolvido numa aura de nostalgia e certezas. Parecia-lhe que antes tudo estava arquitetado nas mais perfeitas condições para o início de sua construção interior, quando ele de repente decidiu atribuir a outro a administração do que seria ao final o que ele chamaria de ele mesmo...
Ele mesmo...
E pedaços do que já não era...
Enquanto as pequenas coisas a serem devolvidas se amontoavam diante dele, amontoavam-se também sobre ele todas as ações que poderiam ter sido outras se seu real desejo fosse não estar vivendo o que vivia agora enquanto arrumava coisas que nunca mais veria, coisas que em algum tempo estariam com a coisa que se afastara e que, por não ser coisa, também o olhava e via o que não mais veria. Lauro pensava se o que ela pensava tinha algo a ver com o que poderia ser deixado para trás por eles quando as coisas já estivessem em sua posse... e apenas lembranças esmaecidas fossem a única ligação com o que um dia fora a mais sublime vivência de um tempo de grandes expectativas... ou se apenas o que ela queria fossem suas coisas, que eram suas, que precisavam ser devolvidas.
Mas quem lhes devolveria o que pra sempre foi tomado?
“Vai doer... escorrer...
Quem pode se esconder?”
Os versos no papel haviam sido escritos pela parte de Lauro apta a decidir pela aceitação, palavras vindas de um lugar tão escuro quanto a solidão que agora o acolhia com braços de um carinho inevitável.
-Alô, oi Dona Bianca, é o Lauro, tudo bem? Só tô ligando pra saber quando a senhora poderia vir pegar as coisas esquecidas da Cintia... eu sei que faz tempo... não tem muita coisa não... mas são dela. São especiais para ela... ou eram...
Ela avisaria. E viria busca-las. Se não viesse? Então as coisas ficariam a lembrar-lhe o que havia partido? Mas como, se esquecer era o espólio de sua derrotada vitória?
Bem, Dona Bianca nunca apareceu. Sua filha, está feliz por estar grávida. Sua única filha. Seu tesouro. Dona Bianca tentou durante anos por amor à filha ver em Lauro algo que lhe fizesse lembrar nem que fosse a sombra do que havia sido Cabo Gaspar, o marido morto ainda moço usando farda militar. Mas achava Lauro patético, e Lauro sempre soube. Luiz Fernando com certeza foi a melhor coisa que apareceu na vida da filha, alguém que tinha algo a oferecer de verdade, de boa família, coisas para administrar e o desejo de construir... E de cara, um neto... Lauro não queria responsabilidades, ou era estéril, era o que vivia a repetir para Cintia, que com olhos fugidios tentava esconder da mãe a cara que a denunciava quando menina e não aceitava admitir a verdade. Dona Bianca deseja não ver Lauro nem de longe, mas não tem nada contra ele. Na verdade, o lado mãe nela viu que a ele seria mais real reconhecer com a separação que ela sempre esteve certa quanto a ele, ele não seria capaz... ele ainda era muito livre... ela uma vez o disse olhando-o nos olhos.
Ele era?
A tarde lentamente desfilava do lado de fora da bolha que o envolvia num manto de insensível carícia. Qual afeto agora faria diferença dele para com ele se ele mesmo sabia que isso seria inevitável?
Dor...
E Lauro sabia que se doía, não doeu só nele. Antes, ele não via Cintia como agora vê. Não se trata da barriga que ele acredita estar perfeita... ela também sofreu... e renasceu... e ainda não sabia que estava enganada?
Mas alguém nasceria...
E o que era isso diante das coisas que ele agora insistia serem devolvidas?
Tudo muito pequeno... possível... Lauro havia se acostumado com a máscara que havia escolhido para si, e agora via a pequenez do que havia almejado diante da grandeza do renascimento de toda expectativa partida em pedaços pela natureza cruel da vida em seu eterno fluxo... onde há o impossível...
Lauro olhou mais uma vez para o álbum, a gaita, o livro de bolso sobre Taoísmo, uma palheta e a carta. A última escrita para ele. Foram incontáveis as vezes em que eles estiveram sobre sua cama solitária. Fotos do que foi, lembranças de tantos sons e tantas ideias jogadas na roleta do destino e amargamente cedendo o prêmio à banca. O livro falava sobre sentido e sobre vida... eles o leram juntos inúmeras vezes... e o que tinham tais coisas de mais valoroso que aquilo que incólume repousava no ventre de alguém que merecia ser feliz?
Nada.
Não havia nada ali que pudesse ou devesse ser devolvido. Assim como nada que devesse ser alterado. Lauro por alguns instantes sentiu a página deslizar por entre os dedos... e logo em seguida uma outra página, dessa vez em branco, surgir. Havia um preço a ser pago e também a ser cobrado. Mas era justo?
Lauro pôs com cuidado os objetos para a devolução na velha caixa de sapatos e lembranças, e com mais cuidado, pôs os pensamentos e sentimentos dentro de uma cela sem grades...
-Isso dói... mas há de escorrer... devo me esconder?
Lauro adormeceu e sonhou que o bebê se chamaria pelo mesmo nome que o seu... e quando acordou, percebeu o quanto foi real tudo o que viveu... quanto o marcara...
“Você ainda é muito livre...”
E desejando tal liberdade, Lauro queria saber se isso era verdade...