Conversa ao pé das cinzas (Uma história de Canudos)
Um farfalhar de asas encheu a noite.
Da barraca de acampamento improvisada, um cano de espingarda espiou. Esperou pacientemente; um novo bater de asas se fez ouvir.
O cano gritou!
Uma explosão dourado-avermelhada como um pequeno pôr-do-sol clareou a noite e por um instante revelou uma silhueta esguia escondida na tenda. Um pequeno volume arredondado descansava ao seu lado. La fora, algo caiu no mato num som macio de penas e folhagem.
O silencio caiu sobre a noite, interrompido só pelo vento correndo rente ao mato. Lá no alto, estrelas minúsculas pontilhavam o céu fitando a terra como olhinhos brilhantes e curiosos.
A silhueta emergiu das sombras da barraca e agachada caminhou lentamente em direção ao capinzal seco. Apalpou o mato com cuidado. Quando tocou uma coisa pontiaguda recolheu a mão assustada. Tocou novamente dessa vez mais acima do que seria um em pé em garra e puxou o volume para si.
- um caburé? É isso mesmo? – perguntou uma voz baixinha quando voltou para dentro da barraca.
- é... Não vê? – havia um leve tom de irritação na resposta.
- Claro que não. Deixa só... ai! Ele me bicou! Tá vivo!
-shhhh... é a unha moleque abestalhado. Segura aqui, olha, sente quer dizer...
Silêncio novamente pontuado um instante ou outro por sons de movimentos dentro da tenda.
- tô com fome...
Um resmungo quase inaudível.
- agora não. Vai dormir mais um pouco. O dia não demora a clarear e então, com o sol nascendo vamo providenciar os meio pra comer. Eu vou correr lá na fazenda dos Barreiros e pedir um moi de sal e farinha a dona Raquel e tu...
- deve ser uma carninha dura isso aqui...
Um som de tapa seguido de um gritinho abafado.
- garanto que é melhor que calango. E tu, moleque metido a senhorio, vai catar lenha aqui nos arredor e depois vai depenando esse bicho. Quando eu chegar nós assa. Agora vai te dormir um pouco...
- sim sinhora. Mas escute mainha... E os soldados ai nas redondeza?
- eles já tão partindo. Já fizeram o seu trabalho... Aposto que tão a caminho do Rio agorinha levando a cabeça do Conselheiro consigo. Aquelas praga... Vá dormir vá.
O silêncio estendeu-se como um tapete perante aquela ordem e prolongou-se por algum tempo até que um sussurro se elevou das sombras:
- mãe... – nenhuma resposta por alguns instantes.
- que é?
- ainda tem alguém no arraial?
- não...
Silêncio.
- mãe...
- que?
- Por que a gente fugiu se a senhora queria ficar?
- tá falando de que?
- uns dias antes da gente partir adoidado de lá vi a senhora falando pro pai que... preferia morrer a fugir como uma covarde.
Silêncio. Um longo suspiro e por fim:
- que tem isso? e que diabo tu vem lembrar dessas coisas agora? Nessas hora?
- eu num sei...
Silêncio. O vento lá fora fez balançar o capinzal.
- Quer saber por que eu preferi fugir contigo a ficar lá? - uma pausa seguida de novo suspiro - Minha vontade era morrer ali, mas antes ia derrubar uma dúzia, se não mais daqueles soldados do inferno... Ah se ia. Mas eu fugi pra garantir que tu viva uma vida inteira meu filho. Deus te deu esse direito e o Conselheiro abençoou. Eu num ia negar... Se eu ficasse lá ia morrer feliz, lutando ao lado de teu pai e tanta gente por aquele pedaço de terra que é só nosso... Mas taria te negando o direito de viver, por isso fiz essa escolha... Tá satisfeito? – a emoção era clara na sua voz apesar do tom de voz seco.
- tô.
- agora dorme.
Aquele era o reino do silêncio. Interrompido hora ou outra, a maior parte do tempo ele mantinha-se firme, soberano naquelas redondezas. Aquele era seu momento mais uma vez. Ainda assim podia-se ouvir um som baixo, abafado de alguém chorando na escuridão.
Por fim até o choro se calou e era como se não houvesse mais ninguém por ali.
- mãe... – chamou-a uma eternidade mais tarde. Dormira um bom tempo, assim acreditava, mas ao acordar ainda era noite. O dia parecia hesitante de vir.
- que? – a voz estava distante. Baixa.
- eu vi...
- viu o que? – perguntou num tom de voz desinteressado.
- Eu vi... Ontem de noite... eu levantei pra mijar. Saí agachado como a senhora manda e me levantei ali no capinzal. Tava bem escondido, tinha nenhum risco não... Eu vi fogo. Umas bola de fogo brilhando longe. Acho que era no arraial, lá pela beiradas do morro e um cheiro ruim vinha de lá. Um cheiro de...
- de que? – a voz baixara a um sussurro. Talvez ela estivesse olhando as estrelas pelas frestas na entrada da barraca, ou vigiando o mato nos arredores enquanto o escutava distraidamente. Ou quem sabe cochilando.
- de carne queimada – completou – gente queimada como a senhora disse que tem por lá... E... Eu tava com fome... Quando senti aquele cheiro meu estômago roncou e fiquei com mais fome ainda. Isso é pecado, eu sei. Eu vou pro inferno por causa disso?
Um som pesado de respiração veio flutuando na escuridão em resposta.
A pequena silhueta se arrastou para fora da barraca.
Empunhava a espingarda como se fosse uma lança. Lá dentro a mãe roncava pesadamente. Seguiu agachado até o mato crescido e levantou-se. O peso da arma teimava em puxá-lo para baixo. Ao longe, as bolas de fogo haviam se reduzido a miúdos pontos brilhantes. Não havia cheiro algum vindo daquela direção, ainda assim o estômago roncou e na escuridão ele sorriu.
Afinal, não era um pecador.