A Chave de Arquimedes
A Chave de Arquimedes
O jovem adentrou a praça com passos rítmicos, olhou os bancos de cimento rapidamente, e sentou-se em um dos poucos vazios que se encontravam ali. Por alguns instantes ele observou o movimento absurdo da cidade, seu vai e vem acelerado de todas as manhãs não poupava nem o centro da praça onde perante seus olhos um pequeno rio de pessoas escorria incessantemente; “Bem, não é de se admirar de uma praça em fronte ao terminal urbano” - pensou ele enquanto pegava o celular no bolso para checar o horário - “ 7:17, estou adiantado como sempre e conhecendo Julia ela não vai aparecer antes das 7:40.”
Tirou então um pequeno livro de poemas, “ Antologia Poética, Fernando Pessoa”, da mochila negra que agora descansava ao banco, e começou a folheá-lo despreocupadamente.
– Ei Arquimedes! Acorda! – soou uma voz grave próxima.
Interrompendo a leitura, o jovem ergueu os olhos do livro e fitou a cena:
Um policial jovem, devidamente fardado, cutucava com seu cassetete um velho homem que deitado no banco ao lado começava a despertar. Alguns cutucões depois, o velho acordou com um sorriso.
- Ha, bom dia seu guarda, lindo dia não?
- Não me venha com essa Arquimedes, quantas vezes lhe disse para não dormir aqui?
Erguendo-se preguiçosamente, o velho se sentou no banco, calçou um par de havaianas surradas que estavam próximas e ajeitando a barba e cabelos grisalhos, respondeu:
- Muitas vezes, acredito eu, mas realmente não sei exatamente quantas. Você contou?
- Claro que não! – respondeu o policial em um tom mais sério- E não é isso que importa, o que importa é por que você esta dormindo aqui afinal?
- A noite estava estrelada e gosto do canto dos pássaros naquela arvore de manhã – disse apontando para um velha arvore no extremo norte – não é incrível que mesmo com o vai e vem de tantas pessoas os pássaros ainda cantem?
- Sim, é. – respondeu o policial hesitando um pouco - Mas eu lhe proibi de dormir aqui, não se lembra?
- Lembro, aliás, nós já não falamos sobre isso hoje?
- Falamos! – irritou-se o policial – Por que você simplesmente não me obedece e paramos com isso? Sei que você não passa de um velho louco, mas se insistir em ficar dormindo aqui vou acabar usando a força e você não quer isso, quer?
- Não, mas e você, você quer? – perguntou o velho calmamente.
- Não, mas é minha obrigação, por que você não passa a noite no albergue ou pelo menos em algum lugar que não seja tão publico?
- Gosto deste lugar lembra? E além do mais não consigo escutar as pessoas quando elas não usam a chave.
- Você e sua maldita insistência Arquimedes... Chave? Que diabos de chave? Será que dormir tanto tempo na rua finalmente afetou seus miolos?
- A chave oras, como você espera entrar na minha mente e me convencer de algo se não usa a chave para abri-la? Bem, você pode usar a força de sua autoridade como quase todo mundo, mas na minha idade, eu simplesmente estarei aqui amanhã de novo para ouvir os pássaros. Aliás, amanhã você não trabalha por aqui né?
- Não eu só faço minha ronda aqui as...
- Quintas não é? – interrompeu o velho – Você é o único que me incomoda, eu até gosto de conversar pela manhã, mas você sempre esquece a chave, é cansativo não acha?
- Eu não estou conversando, estou fazendo o meu dever e você deveria obedecer sem essa sua loucura de chave! Qualquer dia mando o hospital psiquiátrico buscar você! Por hoje simplesmente não durma de novo ok? Já perdi tempo demais com você. – disse o policial e saiu ecoando seus coturnos pelas pedras da praça.
O jovem fitou por alguns instantes o policial atravessar a praça e continuar seu caminho, para então instintivamente voltar os olhos para o velho no banco e encontra-lo olhando diretamente para sua pessoa com um sorriso nos lábios.
Envergonhado por ter sido descoberto, o jovem voltou-se ao livro e tentou esquecer o assunto, mas a curiosidade falou mais alto e, fechando o livro entre o dedo indicador, aproximou-se do homem que agora simplesmente admirava a arvore no norte da praça.
- Com licença... – aproximou-se o jovem hesitante, mas curioso.
- Ah bom dia poeta! – disse o velho com um sorriso
O jovem parou um instante perante o cumprimento e percebendo sua face confusa o velho riu.
- Ha há! Não, não sou um bruxo, lhe chamei assim pelo seu livro, você não acha que todos que leem poemas são de alguma forma poetas?
O jovem lembrou-se do livro que segurava na mão, e concordando com o velho, sentou-se ao seu lado no banco.
- São sim e de certa forma até os pássaros na arvore são poetas, não acha?
- Sim e como tudo de mais belo da natureza nem precisam de palavras.
- Verdade, mas... Posso lhe perguntar uma coisa?
- Você quer saber sobre a chave não é? Você realmente me pareceu alguém bem curioso.
- Sim, esta chave, era uma desculpa para o policial não te perturbar? – respondeu o jovem tentando ignorar o comentário sobre sua curiosidade.
- Claro que não! Alias, sempre achei que os poetas conhecessem a chave, muitos poemas são entregues ao mundo com ela e por isso adentram nas pessoas sem mesmo possuir a estética pressuposta. Todo o verso sincero de amor nasce e é entregue com a chave.
- E que chave é esta?
- Todos a conhecem, mas nem sempre a usam, a chave para abrir mentes, almas e corações meu amigo, é a humildade. – respondeu Arquimedes tranquilamente.
- Wiliam? – chamou uma voz feminina ao lado do jovem.
O jovem virou o rosto, e encontrou uma face feminina sorridente, embora aparentemente um pouco curiosa por ele estar conversando com o velho.
- Julia, resolveu aparecer mais cedo hoje então? – retrucou o jovem em um tom alegre.
- Na verdade não, já são 7:42 sabia? Sobre o que vocês estão conversando?- perguntou Julia, mas voltando a atenção para o velho no banco.
- Ah nada de mais! Este é Arquimedes, ele estava apenas me ajudando a achar uma chave. – respondeu o jovem sorrindo.
- Você vive perdendo tudo não é mesmo? – disse Julia lhe estendendo a mochila que ele havia deixado no outro banco.
- Pois é, mas quando os outros me ajudam sempre encontro! – gargalhou Wiliam.
Os dois então se despediram do velho Arquimedes e seguiram com o seu dia, mas o jovem jamais se esqueceu do velho e da sua chave tão conhecida e tão esquecida que se chamava humildade.