A primeira vez de Ana e Jorge
Ana e Jorge eram amigos há muito tempo, daqueles que compartilhavam tudo, desde as revistas policiais que ocorriam periodicamente no morro ao sonho de que, um dia, iriam vencer na vida e, assim, ajudar os seus.
Um era a primeira pessoa para quem o outro ligava quando estava em apuros.
Ela, garota franzina, pela clara, cabelos e olhos pretos. Gostava de consertar eletrodomésticos, de pintar e fazia parte do conselho de moradores da comunidade. Ele, estatura mediana, rosto sardento, cabelos de fogo. Gostava de futebol e de histórias em quadrinhos que, como não tinha dinheiro para comprar, costumava ler na banca do Zé Pechincha, no centro da comunidade.
No sábado passado, como os pais de Jorge não estariam em casa, Ana foi lá. Moravam perto um do outro - dois bueiros de distância - e longe dos olhares dos políticos.
Como roubaram sua bicicleta velha, Ana foi a pé. Para seu azar, no meio do caminho, começou a chover, então ela ficou toda ensopada de água e, como as ruas não eram asfaltadas, os pés ficaram enlameados.
Chegando à casa de Jorge, Ana foi tomar banho de cuia no cacimbão que tinha no terraço, enquanto Jorge pegava umas cervejas baratas que seu pai ganhou numa aposta no bar do Zequinha. Após o banho, Ana vestiu uma roupa que Jorge emprestou - uma camisa com a imagem do político que, se eleito, vai, enfim, mudar a vida da comunidade e um calção comprado no mercado por cinco reais, ou melhor, por cinco lágrimas, que era a moeda do morro da penitência.
Foram para o quarto dele de três metros quadrados, que, por falta de espaço, foi construído no primeiro andar da casa. Ficaram sentados na cama tomando as cervejas. Nem gostavam muito do sabor, gostavam da sensação de liberdade que a transgressão trazia, já que, por terem dezessete anos de idade, não podiam beber bebidas alcoólicas. Enquanto tomavam cerveja, discutiam o futuro do país, filosofavam sobre a vida e tramavam como iriam vencer na vida.
As mãos deles, entre as cervejas, se tocaram sem querer, mas, naquela noite, permaneceram uma sobre a outra. Ambos fingiram que era por esquecimento ou efeito do álcool, mas, na verdade, faltava era coragem para admitir que era por vontade, talvez até por necessidade.
Ficaram assim por algum tempo...
De repente, eles levantaram o rosto e os olhos despretensiosos se enxergaram, mas, dessa vez, de forma diferente...
Pela janela entreaberta dava para contemplar a lua cheia. As estrelas no céu e os gatos que andavam pelos telhados dos casebres vizinhos eram as únicas testemunhas e, enquanto eles se olhavam, ouviam a melodia do vento acariciando os galhos das árvores.
Ele estava com o cabelo bagunçado e a barba por fazer. Ela com o cabelo preso em forma de coque.
Sorriam um para o outro com uma certa timidez e, apesar de se conhecerem por muito tempo, se olhavam com um certo ar de curiosidade, como se quisessem experimentar algo novo.
A luz que entrava pela janela batia no rosto deles e, desafiando as possibilidades, ele conseguiu ficar ainda mais sedutor e ela ainda mais linda.
Então eles juntaram toda a força que tinham dentro de si e, juntos, de mãos dadas, atravessaram a linha tênue existente entre a amizade e a paixão, entre o querer bem e o tesão.
Naquele momento, enquanto se olhavam, tinham consciência, sem dizer uma palavra, que talvez a amizade deles nunca se recuperasse. Tem coisas que não se pode voltar atrás e fingir que não aconteceu e eles sabiam disso... mas, naquele momento, o desejo era mais forte do que a razão ou o pudor.
Por um momento, nada mais importava...
Um só conseguia olhar para os lábios do outro e, com a respiração acelerada, eles se questionaram se era mais um sonho.
Então, para ter certeza de que era real, se aproximaram lentamente e encostaram os lábios, enquanto um ouvia o coração do outro batendo forte.
Logo perceberam que não era apenas real, mas era melhor do que qualquer sonho!
Foi a faísca que faltava para pegar fogo... Eles se beijaram com uma urgência nunca vista antes e, por um instante, se esqueceram da fome, da violência, do desemprego, da falta de educação que assombravam a todos do morro da penitência diariamente.
Como se nada mais existisse, se tocaram com as mãos e com os lábios, se experimentaram e então gozaram.
Após o clímax, os seus ouvidos que pareciam estar tampados para o mundo, passaram a ouvir novamente. Eram sons de gritos, de medo, de desespero. Havia também sons de sirene.
Rapidamente, se vestiram e foram correndo até a rua ver o que estava acontecendo...
Chegando lá viram cinco corpos no chão ensanguentados e alguns vizinhos encostados na parede com as mãos para cima sendo revistados.
Ninguém sabia o que estava acontecendo!
Todos olhavam uns para os outros em busca de respostas e a luz da sirene da polícia refletia em seus rostos de terror...
De repente, a polícia atirou sem razão...
Enquanto um tiro passava rasgando o coração de Ana e outro penetrava a cabeça de Jorge, eles falaram:
- Por quê?
E logo concluíram:
- E precisa de motivos? Afinal, todos da comunidade são bandidos...
Assim como viveram, também morreram: juntos!
E como todos os outros sonhos que ousaram crescer no morro da penitência, os de Ana e os de Jorge não tiveram chance, nem oportunidades, nem direitos... não chegaram à maioridade, tombaram junto com eles e foram, como já esperado, estraçalhados pela dura e cruel realidade.