Conto das terças-feiras – Calçamento de pedras toscas
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 2 de outubro de 2018
Ela morava em uma casa sem luxo algum, uma pequena sala, um quarto e um puxadinho que sua mãe fazia de cozinha. Uma janela apenas, ao lado da porta que dava para a rua. Da sala para o quarto havia uma comunicação sem porta, a intimidade das duas mulheres, filha e mãe, era resguardada por uma velha cortina de chitão, estampado com desenhos grandes e coloridos. No quarto, uma velha cama de madeira e sobre ela um colchão de palha, farrapos de lençol e colcha, tudo muito limpo. Não havia guarda-roupa. As roupas eram arrumadas cuidadosamente dentro de um velho cesto de vime. De um lado as da mãe, do outro, as dela. Havia também uma velha penteadeira que, em suas duas gavetas guardava escova de dente, pasta dentifrício e apetrechos de maquiagem.
Da pequena sala para a cozinha improvisada estendia-se estreito corredor. No puxadinho, um fogão a gás de duas bocas – único luxo - um armário de aço branco onde eram guardados pratos, copos, alguns talheres e panelas. Os mantimentos; arroz, feijão, farinha, meia dúzia de ovos, sal, pimenta, cebola, alho, café, açúcar e só. Mãe e filha ganhavam o sustento fazendo unhas e cortando o cabelo da vizinhança, arte aprendida em outro salão mais bem equipado. Eram poucas as clientes, daí os parcos recursos que dispunham. Os dias de trabalho eram sexta e sábado e ainda no domingo só para atender alguma mulher que perdera a vez nos dois dias anteriores, mas precisava estar bonita para a missa do domingo à noite e para o desfile do “quem-me-quer” na calçada da praça defronte à igreja.
Apesar de toda essa miséria, mãe e filha eram felizes. Eram bem aceitas pela vizinhança que não tinha conhecimento de qualquer coisa que as desabonassem. Diziam delas:
— Moças trabalhadeiras, honestas e dedicadas. A ausência de um homem na casa não lhes faz falta.
— Sinto pena delas, às vezes não têm o que comer e, quando você vai lá, elas estão sempre sorridentes, atendendo a todos com muita presteza.
Assim era a vida de Sandra, a mãe, e Camila, a filha. Ambas tinham os traços fisionômicos perfeitos, eram bonitas, a filha muito mais que a mãe. Camila era graciosa, alta, pernas torneadas e ancas perfeitamente arredondadas. Seu andar sobre as pedras toscas do calçamento de sua rua, fazia movimentar o seu corpo como se ela estivesse andando nas nuvens e ao som de uma bela sonata. Era um delírio para os senhores de meia idade que habitavam aquele pedaço de rua. Era só para os olhos, pois as patroas, sempre atentas, vigiavam os seus maridos diariamente, principalmente de segunda a quinta-feira, quando ambas fechavam a casa e caminhavam para a rua da frente, para apanhar o ônibus que as levariam para destino ignorado pelos vizinhos. Ninguém especulava sobre essas saídas, todos tinham plena confiança nas duas, nada tinha sido observado pelas senhoras da rua de calçamento de pedras toscas que pairasse qualquer dúvida sobre mãe e filha.
Certo dia, um carteiro novato que entregava cartas na casa de dona Marieta, ao perceber que as duas mulheres cumprimentaram efusivamente a senhora que recebia as cartas e por ela foram saudadas, comentou:
— Eu conheço estas duas mulheres, elas têm uma casa na minha rua. Moram com um senhor e o filho.
— Não é possível, disse dona Marieta apontando para a casa no início da quadra, — elas moram naquela casa!
— Eu tenho certeza que são elas, elas vivem com um fazendeiro das bandas de Sobral. Eles chegam na segunda-feira e vão para a fazenda na quinta-feira, pela tardinha.
Dona Marieta, já desconfiando que o assunto lhe traria novidades, perguntou:
— Como é o nome do marido dela? Como é ele? E o filho, você conhece?
Arrependido de ter iniciado essa prosa, de ter metido o bedelho onde não devia, o homem começou a balbuciar.
— Ele é é um sujeito alto, ma magro, cabelos grisalhos e com compridos! Usa óculos e tem uma pe perna mais curta que a outra. O nome do filho parece que é Eduardo, completou o carteiro, já prevendo que entrara em tremenda confusão, pois dona Marieta desmaiara aos seus pés.
Depois de recobrar os sentidos, a mulher pediu para o carteiro levá-la até a casa das duas mulheres. Chegando lá, ela pagou muito bem pelo silêncio do carteiro, e o mandou desaparecer. A mulher abriu a casa à sua frente e encontrou o marido nos braços de Sandra e o filho nos braços de Camila. Sem dizer uma só palavra, dona Marieta tirou de sua bolsa um revólver Taurus Cal. 38, de 8 tiros, desferindo dois projeteis na direção do coração de cada um dos presentes. Os tiros atingiram certeiramente os alvos, dona Marieta pertencera à polícia federal e era exímia atiradora.