A caminho da família
- Oi, é a Srta Cármen?
- Sim.
- Boa tarde, você me chamou pelo aplicativo para uma corrida, né? Eu sou o Zé Alberto.
- Sim, fui eu mesma.
- Pode entrar, por favor.
- Obrigada.
- Hum... aqui no aplicativo não diz para onde você vai. Tem o endereço para a gente poder acertar no GPS?
- Esse aqui.
- Vixe, é sério isso?
- Algum problema?
- Isso aqui é fora da cidade, longe para caramba! Se eu soubesse nem tinha te pegado.
- Desculpe. Não coloquei o endereço porque fiquei com medo que ninguém aceitasse a corrida.
- Com razão. E eu que já estava até fechando o expediente por hoje.
- Puxa, mas eu preciso mesmo. Por favor!
- Tá, mas só se você me pagar a viagem de volta também!
- ... tudo bem.
- Sério?
- Sim. É importante.
- Olha só, só vou aceitar porque não quero nenhuma mocinha perdida por aí nesse frio.
- Graças a Deus. Muito obrigada!
- Certo, Srta. Vamos embora.
- Pode me chamar de Cármen. Só Cármen.
- Certo Cármen, pode apertar o cinto, por favor?
- Sim, claro.
- Bonito nome, aliás.
- Obrigada. Recebi este nome em homenagem à minha vó.
- Escuta, não me leve a mal, mas o que tem de tão importante lá que valha a pena pagar dobrado pela viagem?
- É uma reunião de família.
- Entendi. Faz tempo que não se encontram?
- Sim, já faz algum tempo, desde que me mudei para cá.
- Você foi e sua família ficou. É isso?
- Mais ou menos isso.
- E então? Já se acostumou a viver longe da sua família?
- Bem, no começo é um alívio não precisar dar satisfação a ninguém, mas às vezes...
- ... Às vezes bate uma saudade, né?
- Exatamente.
- Sério, todo mundo fala sobre isso de apoiar uns aos outros, de laço de fraternidade e tal, mas no fundo, cada um pensa de um jeito e faz o que quer. Parece de propósito, só para encher o saco.
- Nem me diga. Eu e minha mãe vivemos brigando.
- É isso acontece...
- Meu pai dizia que era porque éramos muito parecidas.
- Sei... Não estou te incomodando com esse papo não, estou?
- Como?
- Sabe, quando a gente passa muito tempo sozinho, vai ficando ranzinza e acaba tagarelando, falando besteiras pros passageiros.
- Imagina, não é incômodo algum. O Sr. dirije há muito tempo?
- Acho que há uns quarenta anos.
- E a família do Sr.?
- Minha família? Sou viúvo, sabe? Tivemos uma filha, mas ela casou e foi embora. Nem sei por onde ela anda hoje.
- E o Sr. não sente falta?
- Falta do quê? Família? Minha família é o Mengão, a maior família do Brasil!
- (risos) É mesmo? Mas ouvi dizer que o time não anda muito bem no campeonato.
- Ah! É aquele técnico cabeçudo que não sabe entrosar o time. Mas nem por isso a gente pára de apoiar, não é?
- Sim, apoiar a família é sempre importante.
...
- Escute, é nessa rua não é?
- Sim, aquela casa perto da árvore. É onde eu cresci.
- Certo, vou encostar alí.
- Por favor.
- Bom, sra Cármen. Entregue sã e salva.
- Muito obrigada pela viagem. Por tudo.
- Olha só. Como você teve muita paciência comigo durante a viagem, só vou te cobrar a viagem normal, ok?
- Imagina! Faço questão.
- Ah, não precisa. Aliás, isso vai contra as regras do aplicativo. Mas me avalie com 5 estrelas, combinado? Desculpa qualquer coisa, ok?
- Bem...
- Hã? Mais alguma coisa?
- O Sr. não gostaria de entrar e... tomar um café?
- Eu? Por quê?
- Sim, assim, como sinal de agradecimento...
- Escuta, deixe eu te dar um conselho. Você não pode ficar por aí convidando estranhos para entrar na sua casa.
- Não posso?
- Claro que não, você nem me conhece direito!
- O Sr. é o Zé Alberto, taxista há quase meia década e torce para o flamengo. Me fez um grande favor aceitando fazer esta viagem.
- Olha só menina, tem muita gente ruim nesse mundo. Todo mundo querendo levar vantagem. Ainda mais em cima de mocinhas assim como você.
- E o sr? É dessas pessoas ruins?
- Eu? Claro que não! Eu sou o cara mais honesto deste mundo!
- (risos) Se isso é verdade, qual o problema?
- Ora! Eu posso estar mentido! Além do mais, não quero atrapalhar a reunião de ninguém.
- Não vai atrapalhar nada, tenho certeza.
- Melhor não. Boa reunião para vocês, Cármen. Cuide bem de sua família.
- Espere... já disse que recebi meu nome em homenagem a minha vó?
- Sim. Que é que tem?
- Bem, eu não conheci minha avó Carmen, ela já faleceu há muito tempo.
- Acontece.
- Também nunca conheci meu avô...
- Ele morreu também?
- Não. Parece que minha mãe brigou com ele bem antes de eu nascer. E nunca mais se falaram desde então.
- Espera aí! Como chama a sua mãe?
- Maria Lúcia.
- Maria... Malú?...
- Não quer entrar para conhecê-la?
- Eu... não. Não, não!
- Só um café. Por favor!
- Eu... será que ela não vai se incomodar?
- Imagina! Tenho certeza que ela está lá dentro, esperando... a gente.
- Só um café... então.