"TOQUINHO" E SUA SOLA DE SAPATO

(em homenagem)

Era por volta de mil novecentos e sessenta e sete (ou oito talvez) e eu contava pouco mais de sete anos de idade.

Cursava o curso primário num colégio religioso, de freiras, cuja instituição iniciava um projeto de vanguarda, posto que poucas "irmãs" usavam hábitos e inovavam na didática pedagógica com o método montessoriano que acabava de ser ensaiado no Brasil.

Tudo muito "moderno" e aquela época marcou a minha vida.

Era divertido montar torres coloridas, preencher conjuntos vazios "nunca entendi: existe conjuntos de nada?", aprender a dar laços e colocar os botões nas suas respectivas casinhas...

E sei disso porque, até hoje, sonho com o pátio da escola, com o sinal de recreio que soava alto (que às vezes me desperta dos sonhos), com a lanchonete, com o odor dos lanches, com o yougurt batido, com a festa dos dias das mães (*nós queremos uma valsa uma valsa para dançar, uma valsa que fale de amores, como aquela dos patinadores...) com a capela do colégio, com a sala da diretoria que eu bem conhecia, e com a "madre brava".

Mas um fato em especial, hoje me reporta a este escrito.

Todos os dias, antes de acessar a sala de aula que ficava no segundo andar da edificação, tínhamos que, depois de cantar o Hino Nacional com a mão no peito, formarmos a fila tomando distância com os braços (lembram-se disso?) e o mais difícil...subir as escadarias sem "fazer um pio" com as solas dos sapatos.

"Nem um pio, crianças!" dizia a madre Zenaide a estilhaçar os nossos ouvidos...todos os dias.

Na fila, eu nunca precisei esticar o braço direito para tomar a tal da distância, porque nunca nenhum coleguinha da escola conseguiu a façanha de ser menor que eu, então, era eu apenas a referência do mínimo ser, ou seja, obrigatoriamente a primeira da fila.

Sempre foi assim.

Se eu não aparecia...a fila não se formava e a confusão era imediata.

Ao tocar o sinal da entrada, todos meus amigos me procuravam para se postarem atrás de mim como se um formigueiro corresse para, a tempo, rapidamente se organizar frente às ordens da formiga rainha.

E gritavam:"Cadê a "toquinho"? "Achem a toquinho!" : e, claro, quase nunca me achavam!

Como era difícil parar de correr por aquele pátio mágico...

A irmã brava, era extremamente rígida, a única que usava hábito e aquilo nos assustava um pouquinho, ao menos a mim, quer dizer, mais ou menos...

Sua fala era como "ordem de Deus" e ninguém ousava desobedecê-la ou desafiá-la.

E o pior: ela cismava comigo.

Todos os dias, vermelha e suada de tanto correr pelo pátio do recreio, lá ia eu levar a minha bronca pública, ameaçada de castigo, caso fizesse barulho na escadaria.

"da próxima vez que não aparecer...vai para a diretoria!" ameaçava ela quase sempre sem cumprir sua promessa.

Certo dia, tive que copiar no caderno por três vezes o que estava escrito na lousa...pelo atraso na formação da fila.

Aquela ideia de nos pedir para subir as escadas sem se fazer um "pio", ah...aquilo me intrigava: é que os respectivos degraus eram de madeira, daquelas fofas e antigas, que vibravam dissonantes só de a gente olhá-las!

Imaginem com as solas de sapatos dum batalhão de crianças inquietas!

O que a professora queria, embora eu não dominasse tecnicamente o assunto, era um desafio à física, aos básicos princípios da acústica, os da propagação do som, portanto, ela nos pedia o impossível!

E eu intuía aquela impossibilidade.

Certo dia, acreditem, criei ciragem e ousei me defender num discurso.

Logo depois da advertência de não fazer "um pio" na escada, virei para trás e contestei:

"Professora madre, é impossível a gente não fazer barulho!-nossos sapatos são de sola dura, então, tinham que ser de borracha. Olha só madre"- e lhe mostrei o fenômeno batendo os pés alternadamente e com força na escadaria, que claro, vibrou ao mundo fazendo um barulhão.

"Só se a gente flutuar, professora madre!"

Meus coleguinhas arregalaram os olhos e logo em seguida todos fizeram o mesmo barulho com suas solas!

"olha, é mesmo, professora madre!".

Senti que eu, meus amigos e a física fizemos uma revolução em segundos!

"Você está perdida!"-me cochichou um deles- "e nós também" -falou um outro!

"Silêncio! -disse a madre furiosa- "estarão todos de castigo se não pararem agora! Tomem distância novamente todos quietos!".

Entramos na sala sem fazer um pio e a irmã iniciou a aula de redação e não se falou mais no assunto.

Estou esperando o castigo até hoje.

Registro que a "madre brava" nunca mais ralhou comigo.

Bem que se diz que, contra fatos, não há argumentos e imaginem com os irrefutáveis argumentos da física!

E eu provei que coragem e bons argumentos...não têm idade!

######

Nota: de coração, segue essa redação à querida professora irmã Zenaide, a inesquecível madre brava, esteja ela aonde estiver...

* citação à clássica canção pertencente à fase de ouro da MPB e que a escola tocava nas festinhas do dia das mães:

Nós Queremos Uma Valsa

Carlos Galhardo