Os cacos do cristal

Ela sempre se afastava de qualquer discussão sobre a dita conversa virtual. Quando eu a incentivava, ela fugia. E tudo me ficava ainda mais obscuro, trovejando em meu entendimento.

Fazia três meses que eu começara a navegar pela NET. Curioso procurava as ferramentas possíveis e imagináveis para adentrar todas suas portas e janelas. Desbravando, ia descobrindo e adoçando a vontade. o tempo me consumia mansamente e, quando eu dava por conta, as horas já haviam roubado de mim os pequenos e médios compromissos. Ela só começou a usar a NET uns quatro meses após mim e por meu incentivo. No comecinho, ela apenas dedilhava e eu a zombar de sua desintimidade com a máquina.

E o tempo passou! Notei que, após ela ter ganhado um laptop em um sorteio, achou de passar várias horas ao dia trancada em um quarto, sempre com o PC ligado. Eu escutava o barulhinho das entradas dos navegantes em seu PC e deduzia que ela estava mesmo navegando junto. Por que fechar a porta do quarto? Aquilo me intrigava. Enraivecia-se ela, quando a arguia sobre isso.

- Tire essas coisas de sua cabeça. Eu fecho a porta porque não gosto que fique aberta.

- Por quê?

- Não lhe interessa!

E minha curiosidade aguçava-se ainda mais. Eu sempre saía para trabalhar pela manhã e apenas retornava à noite. Ela deliciava-se navegando as horas que bem desejasse.

Na sexta-feira cheguei em casa cedo. Ela estava no PC da biblioteca. Estranhei! O laptop estava com problemas para se conectar com a internet, o que eu vim saber depois.

Quando entrei na sala, ela espantou-se. Eu vi que estava batendo papo pelo MSN com alguém. Quis saber quem era e por isso me aproximei. Ela tentou esconder de mim a criatura com quem falava. Eu insisti e cheguei a ler na tela do computador: “amor, foi ele quem chegou?” E eu enlouqueci. Avancei sobre o mouse do PC para vasculhar os parágrafos daquela conversa e ela se jogava à frente interrompendo.

Cansado consegui apagar o monitor do PC para que ela não saísse do MSN. Abracei-a fortemente, rodei-a para pô-la no lado oposto da mesa que dividia o espaço entre a máquina e a estante da biblioteca. Em uma dessas vezes, ela caiu no chão, chorando muito. Eu consegui retirá-la da sala e fechar as duas portas da biblioteca. E então me sentei à frente do pequeno monstro quadrático e teclei. Fiz-me passar por ela.

- Oi, amor?

- Oi, filha. Foi ele quem chegou aí?

- Foi! Mas não se preocupe.

- Vocês brigaram?

- Coisa tola!

- E você está bem? Ele te machucou? Cuidado...

E senti o sangue subir às retinas e a fúria fez-me o desmascaramento e eu olhei para as teclas com a ira santa dos traídos e teclei sem piedade de vocabulário chulo e chamei-o do que quis. Doeu-me muito quando, irado, eu o acusei de corno e ele me respondeu:

- Eu? Tem certeza de que eu é quem sou o corno? Olhe..., pense bem..., não seria você?

Não sei como mas ela entrou na sala. Repentinamente o vidro afastou-se do gradil da parede e, como esperado, ela avançou sobre mim desejando a todo custo impedir-me que eu soubesse mais do idiota que talvez tivesse iludido-a ou vice-versa. Ainda lutamos por alguns minutos, cansado, resolvi ceder e ela apagou o PC e iniciamos uma longa discussão onde eu a acusava de adultério virtual e ela por sua vez a mim de neurótico, desconfiado, louco.

Faz um ano que nos separamos, apesar de continuarmos sob o mesmo teto por absoluta imposição de nossa situação financeira. Três meses após toda a discussão e briga, eu a peguei teclando novamente com ele. Veio iludir-me com uma conversa tola de que tinha em seu rol de amigos do MSN, além dele, sua esposa! Pensou ela, talvez, ao dizer-me essas informações, que minha memória fosse generosa comigo mesmo e tentasse esquecer o episódio.

Tenho acompanhado com preocupação a trajetória de mudanças a que ela tem se submetido ao longo desses doze meses. Pôs silicone nas mamas, transformando-as em duas grandes bolas sintéticas disformes. Colocou mega Hair descaracterizando a linda cabeleira natural de antes, cortada em vão. As roupas mudaram, usa estilo mais jovial. Grande parte do seus dias e noites tem sido preenchidos com longos bate-papos. Não me preocupei mais em saber com quem ou sobre quem. Tranquei-me em meu silêncio doedor tentando diluir o meu grande amor por ela, ainda forte, ficador, desafiando todo o nosso negro e recente passado de separação. Continuei a oferecer-lhe a confiança de deixá-la conduzir todas as finanças da casa. Nada mais me interessa particularizar. A minha dor criou pernas e vai comigo aonde eu vou; não a levo, mas ela vai comigo, inclemente, maltratadora, injusta, rude, depois, um enorme e mórbido fantasma!

Fui educado por uma família religiosa que via na família o tesouro maior de tudo, esteio basilar de qualquer sucesso pleiteado por alguém. Aprendi que o casamento era uma instituição forte, sagrada e indestrutível. Nunca aprendi a ser solitário e a não dividir espaços físicos com outros. Tenho irmãos com vinte anos de casados. Eu a amei intensamente durante todos esses anos, mesmo eu sem enxergar as minhas falhas como amigo, como esposo, etc. Nunca me ausentei do pecado e cheguei até a adulterar, mas diferente dela que me traiu em seu silêncio mais audacioso que culposo, selvagerizando um lugar de mãe e esposa perfeitas com que os meus olhos a viam. Eu submundiei punctiformemente o meu cotidiano com dois ou três laços adúlteros que nada representaram a mim além do pecado curioso a que fui levado. Ela, um cristal sublime e raro da Boêmia, caiu no chão de minha vida, despedaçando-se. Ainda achei a coragem para apanhá-los um-a-um, lavá-los, enxugá-los e depois guardá-los todos em lugar seguro.

Aprendi a dormir sozinho e triste. As noites são longas e apagadas. Lembro-me dela lá embaixo, noutro andar, fazendo sei lá o quê!

Crendo que toda a tempestade passaria, nada contei a ninguém. Achei que logo estaríamos bem e resolvidos. Tudo passaria. Voltaríamos a conviver felizes como antes. E foi então que aprendi a esquecer com a vida! A lição que tirei de tudo isso, quase que inconscientemente, foi que esquecer é possível e desamar demora muito mais que apaixonar-se. Eu a tenho menos em meu coração a cada dia que passa, deitado solitariamente e a pensar na crueza do fato em si, na nossa única piedade de tê-lo resolvido com menos dor e de tudo ter sido mais brando. Talvez, quem sabe, eu tenha permitido que tudo isso acontecesse; eu não a via como humana. Pensei que o nosso amor era intocável e para sempre.

Hoje, pouco mais de um ano separados de fato e de corpos, não consigo sequer abrir a gaveta do coração e ajuntar os cacos de tudo, tentar refazê-los e viver novamente como se tudo não nos tivesse acontecido. Imagino o grande episódio recomeçando e me chega a dor de novo, rasgando o coração, invertendo valores e estirando-me a mão e pedindo que eu deixe tudo e vá, mundo afora, como um louco e infeliz que muito amou uma mulher na vida e que, ferido no âmago da alma, viu seu castelo familiar ruir, desencantar, acabar.

Ela se apronta e sai com a maestria dos pecadores esquecidos do tempo e das dores provocadas. Eu a olho passar, tentando adivinhar seus passos que creio não sejam os passos que se escondem dentro da minha imaginação, irreais, provocadores de ciúmes e dores.

Toda a fortidão de um lar é muito mais que a maleabilidade de um PC, onde se pode navegar por ondas infiéis e obscuras. Ela podia estar conversando com outra mulher e o dito-cujo ser apenas a espada destruidora vestido com alma de hacker, insatisfeita com nossa antiga felicidade.

- O jantar está na mesa, Hidovan!

- Estou indo, Eva!