Projeções
Senha CE306. Entro devagar, quase como um animal acuado, escoro-me numa parede qualquer e aguardo minha senha ser chamada. O ar quente carrega o odor de suor pelo meu rosto e, olhando ao redor, vejo dezenas de pessoas sentadas, em pé e até deitadas, todas olhando fixamente uma tela brilhante que indica a senha que foi chamada. Oprimido por tantas presenças, recolho-me num outro canto e freneticamente percorro o ambiente com os olhos, como que em busca duma distração que pudesse me transportar de uma frustrante sala de espera para algo mais interessante, mais engraçado, algo mais. De longe, um tanto abafado, ouço o som seco de sapato barato batendo contra o chão, em outra parte alguém tosse, a mulher logo atrás de mim murmura alguma coisa e seguindo a orquestra cotidiana eu suspiro fundo, sorvendo grandes quantias de ar que no pulmão solidificando em blocos sólidos a pesar-me as entranhas numa angústia assombrosa que chega aleatória, sem motivo e se instala no meu corpo até formar comigo uma simbiose silenciosa e desigual que deixo prosperar até sumir tão de repente como quando chegou. Mesmo esquecido num canto qualquer, sinto as presenças empurrando-me para dentro de mim mesmo, encolhendo-me de forma tão natural que nem sequer resisto, apenas diminuo-me na tentativa desesperada de uma hora ser tão pequeno que enfim serei translúcido o suficiente para não somente deixar de ser notado, mas também conseguir escapar.
Arrastados como um jabuti, os minutos sucedem-se preguiçosamente, prendendo-me sem pudor ali. Volto a olhar caótico qualquer coisa que me apareça, pronto para capturar voraz o menor sinal de distração, mas todos os outros parecem tão absortos no tédio do cotidiano que por longos momentos imobilizam-se completamente e até desumanizam-se, simplesmente somem e deixam em seu lugar uma sombra autômata que sem paixão alguma controla mecanicamente o corpo e aguarda o estímulo certo para sumir e novamente ceder seu lugar para a alma genuína que outrora ocupara o corpo, mas por um tempo saiu para passear e fugir do tempo que não pass. Modo manual, modo automático, modo manual. Eu me pergunto se também estou no modo automático, simplesmente deixando-me existir, mas tão logo faço a questão eu me dou conta de que o simples fato de tê-la feito foi prova suficiente de que naquele instante eu operava no manual, eu era eu em plena atividade, ainda não estava no modo de espera.
A fila anda, uma confusão de letras e números de tempos em tempos surge na tela, mas tantos ali já esperam há tanto tempo que já não se dão o trabalho de conferir, preferem continuar hibernando nos braços do desgosto até cansarem-se de dormir e voltarem do nada, mais simples e repentino do que soluço de recém-nascido. O ar quente, carregando mil odores diferentes, continua a invadir minhas narinas em ondas fétidas que impregnam-me com aquilo que chamam de perfume de trabalhador, mas já nem percebo, apenas continuo a encarar pessoas com o intuito de não afrontá-las, mas me afrontar e arrastar-me a força de fora de mim mesmo. Poderia tentar conversar, como muitos ali faziam, mas parecia ser um exercício tão fútil. Talvez não fosse, muito provavelmente apenas buscava alguma desculpa para a sua inação que de tão presente acabou por tornar-se mais do que uma inação e sim um estado de ser, uma filosofia própria que justificava o seu existir em um mundo que prezava pelo dinamismo. Se não se movia, se não interagia, se não agia, era simplesmente por tais coisas serem fúteis e sem sentido, não por inabilidade.
Ainda esperando, enfim encontrei algo interessante o bastante para empurrar fora da letargia e mover-me como bem faz o motor imóvel de Aristóteles. Uma senhora de pele pálida como cadáver segura numa mão o papel e na outra carrega apenas um guarda-chuva sujo de poeira. Vez ou outra ela olhava a tela brilhante, mas tão rápido quanto os números e letras apareciam, ela virava a cabeça e fitava alguém, passeando pacientemente entre as pessoas como se se cansasse delas já no primeiro segundo e então seguisse para a próxima aventura fugaz que findava-se sempre da mesma forma: decepção. Decepção por não achar nada naquelas pessoas além de cascas empanturradas com vaidade, excitação e futilidades. Vez ou outra até entortava a ponta do nariz, como se enojada com a miséria que fora capaz de visualizar em alguém.
Comecei a desenhar mentalmente em seu rosto, na minha mente preenchia os sulcos profundos que formavam-se em sua testa e ao longo da boca. A flacidez na pele denunciava, não, gritava sem vergonha a velhice daquela senhora e mesmo os seus olhos castanhos destilavam um cansaço tão grande que parecia contagioso e mesmo perigoso, como se fossem pontos negros capazes de sugar qualquer traço de jovialidade e regurgitar somente desprezo. Como tenho medo do Tempo. Acho que o temo mais do que temo a Morte. Muitas vezes projeto-me no futuro e sempre vejo-me como algo que de alguma forma permaneceu estático e assim naufraga-se em arrependimentos tão frutíferos que desabrocham em um novo arrependimento para cada possibilidade do que poderia ter me ocorrido e no fim das contas não aconteceu, um efeito dominó pautado na separação cruel e distante de potencial e ato, tudo o que poderia ter sido e não é. Mesmo agora já sinto, por algum motivo, o peso de todo o tempo que ainda está por vir e com isso toda a estrutura do meu eu estremece. Não, pior, invalida-se de forma tão estonteante e definitiva que num acidente premeditado colapsa sobre si mesma na vitória contundente da aflição sobre a mente que a projeta e a nutre. Por um segundo imagino-me no corpo cansado daquela senhora e começo a pensar se o seu desprezo na verdade não é dirigido aos outros e sim a mesma. Desprezo por ter acabado medíocre, sentada sozinha numa sala de espera sem ter o que fazer ou rememorar, tendo que submeter-se a olhar faces estranhas e imaginar as coisas que aqueles rostos já viram e ela não.
Subitamente sinto vergonha de mim mesmo, sinto que estou atirando-lhe sem dó a minha jovialidade já fraca, como se o simples fato de eu ter uma existência mais fresca fosse um insulto imperdoável, uma forma de humilhá-la e elevar-me tão egoisticamente quanto possível somente por ter o poder para tal, somente para fazer-me importante naquele breve e assim provar a mim mesmo que de fato eu importo. Finalmente ela me olha, percebe que agora estou mergulhado nela e assusta-se por um instante, talvez surpresa, talvez envergonhada, até seus olhos passearam por uma paleta de expressões que finda-se sem graça na ousadia. Eu a olha, ela me olha de volta. Não iria se deixar ser diminuída, encara-me com um vigor tão debochado que agora sou eu quem se sente velho e combalido, já me perguntando o que eu estava fazendo ali. Uma ou outra pessoa continua a conversar, os olhos ainda se voltam para a tela com números e letras, porém nenhum de nós importa-se com aquilo. Ela desvia o olhar primeiro. Derrotada, vê a sequência chamada e confere sua senha tão rápido quanto um estalo de ossos, então volta-se para mim, contudo é tarde demais. Já venci e venci tão bem que meu interesse nos seus olhos multicolores e multiemotivos esvaneceu-se com tal velocidade e decadência que mesmo a mais medíocre pessoa ali ultrapassou a velha cansada. Pelo canto dos olhos, sem ousar movimentar a cabeça e denunciar minhas intenções, observo-a uma última vez: ela entorta a boca bem de leve, parece até indicar que sentia muito por ter sido vencida tão fácil, mas tão logo o movimento finda-se, já fita outro alguém. Penso em fazer algo, dar-lhe outra chance, mas, ah… Que pena! Chamaram minha senha.