O Salvador e o Matador em Canudos
Na entrada do pequeno arraial de Canudos dois homens aguardavam.
Tinham barba grande, desgrenhada e pele queimada de sol. Chapéu de couro e coletes também de couro sobre as camisas de tecido grosseiro. Empunhavam rifles. A poeira encrustada nas armas lhes fazia parecer velhas e ineficientes, mas seus olhos por trás da cabeleira e da barba eram hostis e valentes. Olhos de caçador. Pendurados nos ombros sacos de estopa remendados que pareciam pesados. Nos pés botinas esbranquiçadas pela poeira. Ali de pé poderiam facilmente ser o reflexo do outro. Até a maneira como se apoiavam numa perna e na outra era parecida.
A sua frente outros dois homens em vestes mais simples montavam guarda enquanto esperavam a chegada de seu líder.
O dito vinha mancando lentamente pela ladeira que dava acesso a entrada do povoado. Tinha um longo cajado, uma longa barba e um cabelo crespo e longo. Metido numa longa túnica amarronzada era a personificação do próprio messias para muita gente dali. Os pés descalços tinham galgado longas distancias até chegar ali. Era Antônio Conselheiro. O rosto magro e afundado nas laterais contrastava com seus modos refinados mesmo para um homem sofrido como ele. Atrás uma pequena procissão de homens mulheres e algumas crianças lhe seguiam, em silêncio.
Ao chegar aos quatro homens tocou de leve nos ombros dos guardas. Um deles adiantou-se:
- perdoe lhe atrapalhar as oração da tarde meu sinhô. Mas esses sujeitos queriam lhe falar pessoalmente.
O velho balançou a mão numa gesto simples de “não há problemas” e voltou-se aos visitantes:
- Tarde – disse com um sotaque carregado - Que posso lhes ajudar meus amigo?
- tarde – responderam juntos. Um deles, da direita, continuou: Sou José Firmino, senhor, mas me chamam Zé Preto e esse sujeito aqui é meu irmão, Humberto Pistola. Não é irmão de mesma mãe, mas de mundo de andança dos caminhos, se é que entendem...
- Seja bem vindo José Firmino. Seja bem vindo Humberto... Como podes ver somos um povo bem simples; nada de luxo ou riqueza. Mas tudo aqui é dividido igual e ninguém passa fome. Se queres descanso e um pedacinho de terra nós hei de...
- querem morar aqui não seu Conselheiro – interrompeu Tião. O guarda da esquerda: – eles quer problema.
A pequena multidão assistia tudo a distancia. Notavam algo incomum ali na sua porta e os olhos curiosos não queriam perder nada. O arraial inteiro falaria daquilo mais tarde.
- que tipo? – perguntou o velho sem alterar a voz.
- Soubemo que a guerra anda batendo na sua porta seu Conselheiro. Que gente do governo anda querendo mandar soldado aqui pra nossas banda. Gente que tá lhe ameaçando e acham que nós que é ameaça pra eles... E soubemo que o senhor anda recrutando gente na defesa do arraiá aí viemo prestar nosso serviço.
- Nós é bom – engatou Humberto levantando o rifle, empolgado – bem treinado.
- Meus irmãos – disse Conselheiro suspirando profundamente, encostaou o cajado junto ao corpo e uniu as mãos enquanto falava: - Somos um povo de Deus como podes bem vê. Aqui eu valorizo a dignidade e o trabalho do pessoal. E apesar da pobreza e das dificuldade o bom Deus há de recompensar todo mundo daqui um dia lá na sua morada, tão me ouvindo? Aqui como podes vê tem criador de bode, lavrador, mulher dona de casa e menino brincando pelos terreiro. Não é lugar de guerra de recrutar soldado ou de homem andando armado... Se quiseres viver aqui pra trabalhar sem ferir a índole do outro ou a tua, podes vir. Somos um povo santo habitando uma terra que o bom Deus nos presenteou e...
- E se os exército inimigo vim seu Antônio? Seus agricultor vai brigar com enxada? Com picareta?
- o bom Deus nos concederá sua benção e proteção. Haja o que houver... Queres entrar? Despoja-te! Não de tuas armas por que até te permito trazer elas, mas deixa ai tua sede de matança. Teu ódio com o próximo. Mal contra mal só gera mais mal ainda meu filho.
- Seu Antônio. Ou entramo ai pra se preparar pra guerra ou vamo embora né Pistola?! – o outro concordou. Tinham os olhares frios como gelo: - agradeço seu convite, mas nós dois num desbravou essas terra dura embaixo desse sol até aqui pra morrer num cerco não. Nós morre lutando. Seja do lado daí ou do outro lado: Dos inimigo.
Um murmúrio correu pela pequena multidão que ficara mais atrás. Os dois guardas ao portão entreolharam-se um tanto preocupados e um tanto desgostosos com aqueles sujeitos ali.
Ninguém fez menção de acolhê-los.
- tarde senhor – disse Zé Preto virando-se.
- tarde senhor. Tarde gente e tenham sorte... – completou Pistola caminhando à sombra do companheiro.
Todos os cumprimentaram com acenos de cabeça.
Há dez passos de distancia, talvez mais, Zé Preto virou-se:
- Seu Antônio! O senhor vai matar eles, todos eles. Sabia disso?
- irei salvá-los. Não importa a maneira Zé. Desejo sorte a vocês meus filhos na vossa empreitada.
Tião chegou bem perto do velho e sussurrou:
- a gente devia acabar com eles aqui. Agora senhor. Eles pode voltar trazendo sabe lá o que. Podem bem ser olheiro dos inimigo.
Conselheiro ficou em silencio vendo-os desparecer na distancia. Por fim virou-se dizendo apenas “não, nada de sangue” e partiu em silêncio. A pequena multidão o acompanhou. Tião e Cornélio ficaram ali; duas silhuetas esguias, tristes, mudas.
* * *
E a guerra se abateu sobre Canudos. Uma. Duas. Três. Quatro vezes.
Homem, mulher e qualquer criança capaz de segurar uma espingarda se mantiveram de pé lutando bravamente contra aqueles desgraçados vindos sabe-se lá de onde.
Os longos dias e noites eram dedicados à luta; o marcar das horas era pontuado pelos tiros de canhão. Tião viu sangue, ossos e mais gente morta que um dia esperou ver. Nessas idas e vindas o Salvador Conselheiro morreu e a esperança ameaçou se apagar. Pernas fraquejaram e olhos lacrimejaram em ligeiros sinais de luto. Mas a guerra não deu trégua e todos guardaram suas dores para mais tarde. Se houvesse um mais tarde.
Tião viu a esposa fugir com a filha. Sequer pôde se despedir; só desejou que terminassem bem.
Lá pelas tantas era somente ele e mais dois companheiros por trás de uma mureta frágil quando uma saraivada de tiros atingiu a todos. Sentiu sangue quente escapando os borbotões da garganta. Caiu no chão segurando o pescoço com uma mão enquanto a outra apalpava o chão a procura da arma. Sabia que morreria em breve e lágrimas vieram quentes como o sangue que lhe encharcava a mão.
Então uma forma apareceu bloqueando a luz do sol. Era Zé Preto lhe apontando um rifle. A roupa, apesar de estar em farrapos ainda era reconhecível: um uniforme militar.
- Mas veja se não é meu amigo Tião... Morrendo. Cadê o conselheiro? Morto num é? A essa altura, segundo os boato que correram já tá podre... Que eu falei pra ele? Que ele mataria todo mundo num foi?!
Um som líquido vindo da garganta perfurada escapou pelos lábios secos de Tião. Nada de voz.
- não se esforce Tião. Nóis bem avisou – pausou olhando ao redor - Pistola também morreu. Anteontem. Só num foi cercado como tá sendo a você amigo – nesse instante algo aconteceu: a figura de Zé Preto transmutou-se em Antônio Conselheiro. Os farrapos se esticaram se transformando na batina desbotada. O rifle tornou-se o cajado lhe apontando:
- quem matou vocês Tião, quem foi? - Perguntava aquela voz rouca e tranquila - Foi o Salvador, num foi? Bem avisou Zé. Se nós tivesse ouvido ele... – aos poucos a figura voltou a ser Zé Preto. Outras silhuetas vinham se aproximavam por trás da cortina de fumaça que cercava os arredores. Suas vozes chegavam até ele como murmúrios longínquos.
O rapaz afrouxou a mão sobre o pescoço e a escuridão que espreitava pelas beiradas se apossou dele por inteiro.
O mundo que o cercava foi gradualmente desaparecendo.