O passo e a linha [conto]
1° Ato: Anderson, de 19 anos, leva um tiro na perna.
O jovem tinha ido comprar, para curtir o fim de semana com os amigos, maconha e pó numa favela da zona oeste, e a polícia apareceu de surpresa numa batida quando ele estava de saída. Durante a troca de tiros uma bala, sabe-se lá da onde veio, acertou a batata da perna esquerda de Anderson. Foi como se um besouro incandescente tivesse caído das estrelas e aberto uma cratera nele. Com o impacto e dor repentina ele caiu no chão. Ardia muito e sangrava grosso. Dois homens ajudaram ele a se arrastar para um bar. Anderson só pensava que morava na zona sul, e que a única explicação para estar ali era comprando drogas. Não podia admitir isso para sua família, muito menos para a polícia. Por isso ele conteve os ânimos dos que queriam chamar uma ambulância. Se fosse para o hospital, com um ferimento de arma de fogo, teria que dar muitas explicações das quais não queria ter que lidar. Alguém amarrou um pedaço de pano apertado em volta do ferimento e Anderson percebeu que poderia andar, mesmo que mancando muito e sentindo a carne queimar. Ele agradeceu a todos pela ajuda, garantiu que procuraria um médico, e saiu do meio daquela confusão se arrastando.
Cenas cinematográficas demandam soluções cinematográficas.
Certo de que não poderia recorrer ao atendimento hospitalar Anderson começou a pensar em como iria tratar o tiro. Primeiro lembrou de Mestre dos mares. Quando o Dr. Stephen Maturin, acidentalmente, é atingido por uma bala em alto mar ele mesmo tem que auxiliar seu amigo, e capitão, Jack Aubrey no procedimento para a retirada do projétil e do pano da camiseta, que se ficasse dentro do corpo poderia infeccionar e levar o astuto médico pesquisador à morte. Neste momento teve o primeiro pensamento de alívio desde ter sido atingido: ele estava de bermuda, não havia nenhum tipo de pano, nem nada, para ser cirurgicamente retirado, só a bala. Anderson também pensou em Fogo contra fogo, quando o assaltante de bancos Chris Shiherlis é alvejado durante a fuga e seu comparsa Neil McCauley o leva para um dentista corrupto que por um bom pagamento retira a bala do pescoço de Chris e salva sua vida. Neste caso o problema era Anderson não ter o bom pagamento, e por esse caminho não existe caridade. Teria que apelar para algo mais Mestre dos mares e Rambo, quando o bravo soldado esteriliza um ferimento com a lâmina da faca quente no meio da selva. Tudo se resumia a tirar a bala com uma pinça, queimar a ferida com ferro quente e suportar a dor.
Adequando a realidade à ficção.
Dentro de um ônibus, na direção da zona sul, Anderson suava frio sentindo a pressão baixar e sua perna gotejava sangue pelo chão. Todos olhavam para ele e o rastro vermelho que levava até onde estava sentado no fundo. Tentando aparentar calma e normalidade ele disparava mensagens pelo celular para Carlos, Natália e Mariana em busca de socorro. O primeiro era um bom amigo do prédio que cursava o segundo ano de veterinária, a segunda uma amiga do cursinho que tinha feito técnico em enfermagem, e morava sozinha numa quitinete no centro (do qual ele se apropriaria como um hospital de campanha), por fim, Mariana era sua namorada. Sentindo que precisava se retorcer de dor, e sabendo que teria que ir para o centro, ele desceu perto de uma estação de metrô e se escondeu numa das cabines do banheiro masculino. Ele tirou sua mochila das costas e pegou sua garrafa de água e seu casaco. Anderson levantou a perna apoiando ela na privada e desfez o tourniquet. Ele sentiu seu pé começar a inchar, e o sangue escorria grosso e vermelho do buraco de bala, que Anderson conseguiu ver a magnitude quando virou a garrafa de água um pouco acima do ferimento. A somatória da dor + impacto psicológico de ver o buraco + perda de sangue e pressão baixa o levou a desmaiar.
Ritos e procedimentos.
Quando Dona Dolores fez a curva no banheiro da estação de metrô empurrando seu carrinho de esfregões, baldes e alvejantes, e notou o sangue escorrendo de uma das cabines, ela não gritou nem se apavorou. A já antiga funcionária da limpeza tinha experiência em se deparar com mortos e feridos no ambiente de trabalho. Apenas seguiu o protocolo e simulações de treinamento chamando o pessoal da segurança. Estes, por sua vez, também tinham seus deveres e obrigações protocolares, por isso isolaram a área, identificaram que Anderson tinha um ferimento a bala, que ainda estava vivo, e acionaram a emergência hospitalar e a polícia. A ambulância chega na frente, e com Anderson ainda desacordado o colocou numa maca e o removeu para o hospital. Um tempo depois duas viaturas da polícia aportaram no local. Os seguranças explicaram que a ambulância já tinha levado o ferido para o hospital. Eles não tinham mexido na mochila, nem procurado um documento que identificasse Anderson para não alterar nenhuma evidência. Os policiais entraram no banheiro e remexeram a mochila, na qual encontraram a carteira. Todos olharam para a foto no RG de Anderson e sinalizaram positivo com a cabeça.
Re-alinhando tempo e espaço.
Alguns quarteirões depois que Anderson desceu do ônibus dois homens entraram no coletivo anunciando que iriam tacar fogo nele e ordenando a todos que saíssem em debandada ou que ardesse em chamas. Um dos passageiros era um policial aposentado que estava armado e partiu para o enfrentamento. Ele matou um deles com dois tiros na altura do peito, ao mesmo tempo que o outro acertou um tiro em sua barriga. Enquanto caia ele conseguiu disparar mais uma bala, que acertou a perna do atirador, que abandonou o companheiro morto e fugiu sem incendiar nada. A polícia chegou, colheu depoimentos, e saiu pela região a procura do incendiário ferido, armado e perigoso. Durante a ronda receberam a informação de um jovem baleado encontrado desmaiado no banheiro do metrô. As duas viaturas mais próximas partiram em disparada para o local, mas não conseguiram chegar antes da ambulância. Quando encontraram o documento de Anderson todos concordaram prontamente que ele se encaixava perfeitamente no descrição de algumas das testemunhas da tentativa de incêndio ao ônibus.