Voltando para casa...
Já há muitos anos estava fora de sua cidade natal e longe de sua família, decidira muito cedo sair de casa buscando liberdade e independência, queria também deixar de passar pelas dificuldades que junto a eles enfrentara.
Embora não pudesse reclamar do carinho, afeto, amor e valores com que fora criado entendeu que não queria para si ou para seus filhos as precariedades e incertezas de onde e como morar, o que ter à mesa ou o que vestir e calçar.
Numa cidade não muito distante, como se diz, com a cara e a coragem, com dinheiro suficiente para lanchar uns poucos dias, foi para lá se aventurar.
Encontrou uma pensão barata, dividindo quarto e banheiro com outros companheiros e histórias semelhantes, queriam todos vencer na vida.
No início ele era um faz de tudo, office boy, estudante em escola pública noturna não perdia aulas e admirava os professores, saboreava naquelas fontes de saberes não apenas o conteúdo das disciplinas obrigatórias, mas uma vastidão de outros conhecimentos que seus mestres conseguiam lhe passar, ampliando em muito o horizonte que lá atrás imaginara alcançar.
Com frequência indo a bancos também conheceu pessoas de outras áreas que viam naquele rapaz instigante e sempre arrumado, apesar de simples, um potencial enorme de quem queria saber de tudo e disposto a saber mais.
Professores, gerentes e caixas de banco, o dono da banca de jornal, motoristas e cobradores de ônibus logo faziam parte dos seus dias e ele nos deles, um personagem marcante, rapidamente inserido e estimado, era um jovem de futuro.
Os anos se passavam, concluiu o antigo colegial, prestou vestibular, fez uma faculdade, namorou uma moça com percurso incrivelmente similar, noivaram, casaram, foram morar numa casa alugada, com móveis de segunda mão, carnês, água e luz para pagar.
Nesse intervalo os contatos com a família eram cada vez mais raros, pensando bem só os vira, pai, mãe e um casal de irmãos quando se casou, eles chegaram para a cerimônia e foram embora no mesmo dia, desculpando-se por não terem presentes ou algum dinheiro para ajudar.
Nas duas despedidas, quando saiu de casa e logo após o casamento, ouvira de sua mãe a recomendação amorosa.
- Meu filho, não se esqueça da gente, vai lá em casa onde sempre tem o seu lugar, vê se não demora, vou fazer a broa de milho que você tanto gosta.
E assim foi, quando comemorou dois anos de casado, foi com a esposa rever a família e com uma novidade, dar a conhecer aos pais que logo seriam avós, o primeiro neto, já que os irmãos continuavam a morar na mesma casa, um deles também casado, mas sem filhos.
Os pais os receberam com alegria e um pouco constrangidos, pois a casa continuava a mesma, pintura por fazer, cerca por consertar, tanque de roupa a descoberto, galinhas soltas e a velhinha e parideira Pretinha, cadela vira-latas, bisneta da Branquinha, companheira das brincadeiras simples e comuns de sua infância.
Tudo estava tão igual, mas desta vez ele percebe resgatar pedaços bons de uma infância feliz.
Apenas um final de semana e já se foram, desta vez sem entender bem o porquê ele se despedia da família com algo confuso em seu peito, um nó apertado que ele não sabia como dele se livrar, a esposa atenta bem que sentira em seu suspirar e sabia do que ele estava com dificuldade de expressar.
Alguns anos mais, já numa casa própria, faltando ainda alguns anos para pagar, um carro bem usado na garagem, um filho já com sete anos e a vida que imaginara num passado não tão distante, sem farturas ou luxos, uma vida boa.
Pouco tempo mais é chamado para ir para casa dos pais uma vez mais, não havia como desta vez adiar, notícias vinham e não muito boas, dessas que as pessoas continuam com dificuldades para lidar.
A mãe, ainda jovem, com sessenta e cinco anos, sem nenhuma doença grave, dormiu para não mais acordar.
Durante a volta ao lar não sentia vontade de chegar, aquele nó apertado volta para o angustiar.
Ao chegar tem uma enorme dificuldade para sair do carro, boa parte dos vizinhos lá estão, ainda um costume de cidades pequenas de se velar entes queridos em casa.
O pai vai de encontro a ele que está parado no portão, um raro abraço agora mais demorado, olhos marejados como nunca viu em seu envelhecido pai, caminham dois passos e já estão na acanhada sala, o velho sofá e pequena televisão dão lugar a um simples caixão onde repousa o corpo da mãe com o terço gasto guardando-lhe as mãos.
A noite é longa, cafés em copos, broa de milho feita pela mãe na véspera, poucas palavras entre eles, silêncio no espaço-tempo para onde as memórias os levam, revisitando dias difíceis, sofridos, mas de singelo amor numa casa que sempre esteve aberta para ele voltar.
- Meu filho, não se esqueça da gente, vai lá em casa onde sempre tem o seu lugar, vê se não demora, vou fazer a broa de milho que você tanto gosta.
De madrugada, quando a sós com o pai e o corpo da mãe, pai e filho se abraçam, ambos choram muito, sem nenhum receio, os nós no peito de ambos se desfazem e assim ficam sem nada falar.
Felizes e gratos são os filhos que sabem ter uma casa para voltar.
Felizes os pais que sabem que fizeram o que estava a seu alcance para os filhos um dia para casa voltar.
Felizes pais e filhos que conseguem ressignificar as dores e sofrimentos de outrora, colocando-se no lugar uns dos outros, perdoando-se, sem dedos para apontar.
Paulo Afonso Barros