Lendo um poema
“Carlos Drummond de Andrade e Silva”.
Levanto os olhos do livro após terminar o título.
- Não tem Silva – diz a professora pacientemente. Está de costas e escreve “Semana da poesia” no quadro em letras bem grandes enquanto me corrige. Incrível como ela consegue falar uma coisa e escrever outra sem se confundir. O som raspante do giz acompanha cada subida, descida e curvas das linhas.
Repito o titulo e por pouco o “Silva” não escapa. Um burburinho corre entre os colegas ao meu redor. Fico vermelho e abaixo a cabeça.
A professora já está de frente:
- pode ler a primeira estrofe, por favor, Esdras?
Balanço a cabeça afirmativamente e prossigo:
“E agora José a festa acabou a luz apagou o povo sumiu e...”.
- Esdras! Para um pouco! Desacelera! Pisa o pé no freio! - Ela ri um pouco e todos ao meu redor veem aquilo como uma licença para rir também. O teto quase vem abaixo com as gargalhadas e ela demora um tempo até conseguir controlar a todos.
A professora Matilde que dava aulas ao lado chega a entreabrir a porta e após um sinal de “tá tudo bem” se vai. Nesse momento meu rosto já é facilmente confundido com um pimentão maduro.
- agora Esdras... – continua: repita a leitura. Só que pausadamente, entendeu? Ao fim de cada verso você fará uma pequena pausa, certo? Leia novamente e todos, por favor, silêncio. Há outros poemas aqui, todo mundo vai ler um pouco e ao fim vamos analisar o que o autor quis dizer. Prossiga Esdras.
Obedeci prontamente. Ainda com alguma dificuldade terminei a leitura.
Naqueles dias odiei poemas. Odiei com todas as forças de uma criança de dez anos as aulas da professora Juliane. Odiei Carlos Drummond de Andrade e S... Arre!
Naquela semana eu deixei de ser Esdras para me tornar Desacelera José! na boca da turma toda. Para um garoto como eu, magricelo, tímido e vendo o mundo por trás de óculos de lentes grossas aquilo era uma visita vip ao inferno.
Isso durou até o dia quando o Gustavo, um menino gordo e atrapalhado do segundo ano escorregou no pátio numa manhã chuvosa bem na hora do recreio. A escola quase toda estava presente e todos riram muito do coitado. Acho que somente eu e mais meia dúzia tivemos pena dele. Até quis me aproximar para ajuda-lo a se levantar; penso que outros ali também quiseram, mas não fizemos nada. Ficamos assistindo ele encolher-se no chão chorando. Tinha os fundos da calça e da camisa ensopados e escuros.
Ficou ali até o porteiro e algumas professoras irem ajudá-lo. Ele deixou de ser Gustavo pra se tornar tomba Gustavo, tomba gordo, ai meu traseiro e tantos outros apelidos, a meu ver, vítima de troças parecidas, pura maldade.
Um ou duas semanas, talvez um mês mais tarde outro aluno ou aluna cometeria uma mancada qualquer e... “mancada”... Palavra que nunca existiu para nós na época, preferiríamos dizer que alguém “pagaria um mico daqueles” e por um tempo seria esse alguém o alvo da zombaria.