Assim na terra como no céu
“Enquanto houver matadouros, haverá campos de batalha”
Leon Tolstói
O sol vem vindo rubro e quente no horizonte quando o Corolla sai do Posto Nossa Senhora Aparecida e avança pela BR -262. Dentro dele dois homens ensimesmados, separados por idades e ideias. O motorista, todo empertigado, alugou meus ouvidos. Troquei-os por uma carona. Agora, vou sonolentamente ouvindo André Valadão.
Sob o céu, na pista quente, jaz alguns exemplares da fauna estadual. Um grande tamanduá aponta para o chão seu finado nariz. No mato próximo dois ovos que não vingará, pois dona Seriema está esmagada na faixa contínua. Um pouco mais à frente uma vil cobra colada ao pavimento não mais ofenderá os filhos dos homens. Perdi a conta dos nobres tatus mortos nos acostamentos para a felicidade dos urubus.
A flora que margeia a rodovia é singela: arbustos, capim e grama. É de uma singeleza compassiva e indulgente, pois é ela quem presencia, recolhe e contempla os desastres.
O motorista, vez por outra, lança um olhar de fastio para a imensidão do cerrado. A pista aprumada à frente faz lembrar uma passarela infinita por onde desfilam as mais diversas exibições humanas, por aqui passa boi passa boiada engaiolada e alguns aventureiros em busca da capital. Que nunca chega, que demora dentro da gente. Já não sei o que é pior: se é por aqui passar ou daqui levar as imagens que ficam retinindo na retina.
O motorista absorto fala pouco. Como se falasse para si e ao mesmo tempo para o mundo todo. Solta frases feitas, provérbios, máximas, sob o pretexto de instruir pessoas imaginárias ou me instruir, quem sabe. A respeito dos motoristas apressados ele diz: os últimos serão os primeiros... Depois de encontrar um acidente na curva, após arregalar os grandes olhos castanhos, exclama: sejam prudentes! Na Lanchonete de beira de estrada, lança olhares enviesados para uma garçonete e sussurra ao meu ouvido: esse corpo que deveria ser a morada do espírito santo...
Próximo à capital, desligou o som e ficou tagarela. Disse que dali a dois meses seria escolhido pastor de sua igreja. Felicitei-o e ele soltou a língua. Disse que gostava muito de ler e, com os olhos brilhantes e a respiração pesada, filosofou dizendo que a vida é como um livro. Quando eu perguntei a qual livro ele se referia, apontou para o painel. Camuflado sob uma capa de couro estava o Livro Sagrado. Ele acelerava e girando o dedo indicador referia-se a todos nós como personagens. Balancei a cabeça e soltei uma pergunta impertinente:
-Quando Jesus voltar ele vai salvar os animais também?
-Sangue do Cordeiro! Não tinha pensado nisso, mas...
Com o rosto vermelho e semblante sisudo fez uma prédica sobre a importância dos animais para o Homem. Citou trechos bíblicos que comprovam que nós somos filhos do mesmo Pai. Por fim, arrematou sua pregação com o trecho: “Assim como morre um, também morre o outro. Todos têm o mesmo fôlego de vida; o homem não tem vantagem alguma sobre o animal”. Sorri placidamente e joguei mais uma fagulha no cerradão de sua mente:
-Alma sente dor?
-Quem sente dor é o corpo.
Campo Grande já se avizinhava para nossa alegria. Desconfiei que ele estava cansado e não era só de dirigir. Eu também, se pudesse, teria cochilado ao menos uns quinze minutos. Fechei os olhos e senti quando o carro adentrou o perímetro urbano. O carro avançava entre o tráfego matutino e a civilização dos sinais. O motorista espera o sinal abrir, inspira profundamente. Não é só o desejo de um café que o renova e me desperta. Há poeira, ruídos e expectativas no ar. Cochilei retraído.
Ao abrir os olhos estava na altura da Rua 13 de Junho com a Av. Afonso Pena. O motorista cutucou-me, tossiu e apontou para mim o ponto de ônibus. Tirei o cinto, apertei-lhe a mão, abri a porta e saí. Acenei e ele também. Tínhamos o contato um do outro. Não seria difícil nos encontrar.
No ponto de ônibus, enquanto fumava, avistei um gigantesco outdoor onde se lia: “Não fume! Fumar causa etc etc etc”. Ri de mim enquanto me suicidava aos poucos. Em seguida, nervosamente, ri para os carros e ônibus que passavam. Súbito, me veio à memória os animais mortos na pista, assassinados diariamente. Depois pensei que se Jesus Cristo voltasse quem ele salvaria? Salvaria a mim, um autossuicida? Salvaria a meus irmãos humanos, assassinos de outros animais? Ou recomendaria que se fizesse uma nova e eterna Arca de Noé no céu?
Deixei de lado esse raciocínio pueril. Não foi para isso que vim à capital. Vim comprar Erva Mate, pimenta e todo tipo de tempero no Mercadão Municipal. Revenderia no interior com lucro de cinquenta por cento. Assim pensava enquanto a barriga roncava. Que ronque, pensei, por que às 11:00, o motorista e eu estaremos na 14 de Julho no Hora do Espetu’s. Lá diluiremos nossa incipiente consciência com carnes e cerveja. Comeremos um bocado.
Certamente não teríamos paz na volta para casa. Nem nós nem os animais. Muito menos aqueles que se arriscam a cruzar a desapiedada estrada humana.