All Star #38 [conto]
É mais fácil acreditar que Deus existe do que acreditar que vou precisar saber a fórmula de Bhaskara para alguma coisa na vida. Numa reflexão rápida, de um aluno de terceiro colegial que quer desesperadamente voltar para casa e ficar fumando maconha escutando o CD novo do Queens of the stone age deitado na cama, se precisar usar a fórmula de Bhaskara em algum momento da vida será um sinal claro de que Deus não existe. “Gente, dez minutinhos prestando atenção, mais dez para a gente fazer um exercício e depois podemos relaxar……...um pouco de atenção agora.” Da minha parte tudo que posso fazer é não importunar nem questionar o método usado para fazer o tempo passar e convencer o resto do mundo de que algo de bom está sendo feito com 30 pessoas e um professor numa sala de aula. Me abaixei na carteira, fechei os olhos e comecei a sentir o mundo vibrar me teletransportando para um lugar macio e aveludado aromatizado com amêndoas. Eu estava deitado na parede sentindo a seda macia massagear minha pele e Villains of Circumstance ecoar na minha cabeça quando fui arrancado do paraíso pelo Enrolado. “Terminei A lua vem da Ásia.” “Parabéns…..o que mais você tem a dizer sobre isso?” “Você ia curtir……..o barato é diferente de tudo que já li……..parece que o cara tá num hospício…….mas também podia muito bem estar perdido por uma cidade como São Paulo…..” “Tipo Zero?” “Sei lá…….tem alguma coisa parecida……”
O sinal bateu e como num movimento mecanizado, numa cena típica da Sessão da Tarde, as portas das classes se abriram e a avalanche da liberdade colocou todo mundo na pista para negócio. Íamos subindo a rua eu, o Enrolado, a Alina e a Júlia. “Tem muito som inspirado na literatura….” “De bate pronto lembro só de Tom Sawyer do Rush e o Blind Guardian com O senhor dos anéis…” “Tem o Brave new world do Maiden….” “David Bowie com 1984….” “Mas aí ele fez a trilha do filme……..conta?.....” “Com certeza….” “Sei lá………..música e literatura são meio que a mesma coisa……” Atrasando o passo um tom a Júlia acendeu um cigarro e veio para o meu lado. “Andei escrevendo umas coisas……..queria te mostrar…..” Meu estômago começou a sentir o sinal. Era como se o momento inevitável do encontro de dois corpos desesperados estivesse ao alcance das mãos. “Claro…..está aí com você?.........posso ver?” “Não…..está em casa…….” Ela chamou a atenção do Enrolado e da Alina e continuou. “....vamos fumar um a tarde no pico da mangueira?....” Ninguém tinha porque dizer não. “A gente se encontra na frente do colégio umas duas e pouco?........ok…...” Iam ser pouco mais de uma hora imaginando o que a Júlia tinha para me mostrar. Depois daquele beijo de despedida no canto da minha boca há um tempo atrás o clima entre nós tinha ficado mais tenso. Não sabia o que ela esperava, não sabia o que fazer e não tinha feito nada. Aí ela apareceu de rolo com aquele tosco do cursinho e achei que tudo estava acabado sem nem mesmo ter começado. Aquiles escritos tinham sido um presságio de primavera para as borboletas no estômago.
Pouco me importava o gosto da comida enquanto almoçava. Imaginei que a Júlia estava escrevendo um diário, e que ela queria me mostrar alguma coisa sobre algum dia em específico. Ou era um poema, que poderia se concretizar com a minha leitura, interpretação e um longo beijo açucarado e apaixonado. Bolei os baseados para o rolê e meia hora antes já estava na frente da escola. A Alina e o Enrolado apareceram dez minutos atrasados. “A Júlia não falou com ninguém?....” Os dois só balançaram que não com a cabeça e continuaram no monólogo de casais. Só conseguia pensar em ler o que a Júlia queria me mostrar. The Scientist do Coldplay não saia da minha cabeça e ficava repetindo para mim mesmo “Tell me your secrets and ask me your questions; Oh, let's go back to the start”. Entre um trago e outro ela virou a esquina e veio andando meio lenta. “Foi mal a demora…..” Ninguém fazia questão de muitas explicações. A Alina e o Enrolado seguiam com qualquer coisa que eu não estava prestando atenção, e a Júlia caminhava à minha frente fumando e evitando me olhar. Só pensava em perguntar sobre o que ela queria que eu lesse.
Sentamos embaixo da mangueira e tirei dois baseados do bolso. Acendi um e passei para o Enrolado. O outro passei para a Júlia como introdução. “Você não trouxe o seu texto?........tava louco para ler.” Ela deu um pega e falou olhando para o horizonte. “Trouxe…...mas não sei se quero que você leia…....” “Você que sabe…….queria ver como você escreve…...” Ela tirou uma folha de caderno dobrada do bolso e estendeu para mim junto como o baseado. “Tudo bem……..mas não precisa falar nada…….só lê……” Peguei o papel e o beck da mão dela e ela virou a cabeça para o outro lado. Bati o olho e vi, pelas poucas palavras nas linhas, que era um poema. Nunca gostei de poemas. Nunca falamos sobre poemas. O que ela queria que eu visse ali? (Quando ela queria que eu visse.) Só podia ser sobre nós dois. Tinha que ser. Passei o olho rapidamente. Natureza, flor, comiseração. Comiseração? O que é isso? ...vida que escorre \ na direção do fluxo \ da comiseração que me rouba \ o suspiro de ser… Aquilo era puro realismo. Fiquei sem reação. Não sabia sobre quem era, nem porque, nem quando, nem como. Se não fosse da Júlia diria para quem me entregou que aquilo era um conjunto de palavras aleatórias sem sentido. Tipo alguém que faz qualquer coisa num momento de profunda reflexão e torce para aquilo ser transcendental. Mas não. Era um monte de letras que não se conectam num significado decifrável. ...enlameado calor de inverno \ que distorce o vento \ sangrando contra o mundo... Devolvi o papel para ela, disse que estava legal, e passei o baseado.