Contos das terças-feiras - O Menino Sanfoneiro
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 28 de agosto de 2018
Davi Emanuel fora batizado com os nomes de dois santos, costume entre famílias católicas que assegurava, segundo os pais, proteção eterna. Davi significa “o amado” e Emanuel “Deus está conosco”. O menino nasceu e cresceu ao som da velha sanfona do avô, em uma família de dez componentes, avô, pai, mãe, quatro irmãos e duas irmãs.
Ao cair da tarde de todos os dias, o vovô Dandan, como o menino chamava o senhor Damião, sentava-se em frente ao deteriorado casebre, construído com paredes feitas de pau a pique e tabique, pelas mãos do velho sanfoneiro. Dois banquinhos de madeira eram ali colocados, um para a criança, que ficava encostada na parede e amarrada por um pano não tão limpo, para ela não cair. O outro, para o vô Dandan e sua sanfona.
Ao completar cinco anos de idade, Davi Emanuel experimentava extrair do cansado instrumento, as primeiras notas musicais. Ele quase não aguentava com o seu peso. Desnutrido e constantemente doente, vivia da cama para o banquinho, às tardes de todos os dias. Ficava impaciente quando não conseguia se levantar da cama, pedia para o avô tocar perto dele. Metódico, isto é, conservador, sem saber o que isso significava, o velho não atendia o pedido do menino, continuava tocando do banquinho, em frente à casa deteriorada. Também não o deixava nem pegar no acordeom, o que só acontecia quando o velho se distanciava de casa, para ir à feira-livre, aos domingos.
Alguns anos se passaram, o velho morreu e o menino, adolescente herdou a sanfona do vovô Dandan. Bastou poucos meses para o garoto, de tentativa em tentativa, e, lembrando-se dos movimentos que o avô fazia ao tocar as três músicas que mais gostava, começar a tirar música de ouvido e tocar as que costumava ouvir o avô executar.
Mesmo assim, foi um período bastante complicado para o garoto, que por não contar com a presença do avô, a aprendizagem ficou a desejar. Vencida a idade de criança, doença sob controle, Davi Emanuel começou a ganhar dinheiro tocando em festinhas da pequena cidade onde morava. Passou a se alimentar melhor, engordara um pouco, já não lhe pesava a sanfona, mas dela não conseguia tirar os sons que desejava. A Dandinha, nome carinhoso que ele havia dado a agora, sua sanfona, estava velha, precisava ser substituída. Lamentava-se muito, pois não tinha dinheiro para tal empreendimento.
Certo dia veio a saber que uma rádio local estava fazendo um concurso para escolher os melhores sanfoneiros da região. Haveria prêmios para as categorias revelação e profissional. O sanfoneiro conseguiu arrecadar algum dinheiro entre os familiares e partiu para a sede do município, de onde a emissora de rádio transmitia seus programas. Aceita a inscrição, Davi Emanuel passou a tocar sua sanfona todos os dias, justamente como o avô fazia, e sentado no seu banquinho. A cada dia ele percebia que o som que saia da Dandinha melhorava assustadoramente, parecia que o avô guiava suas mãos. Na noite, véspera do concurso, ele sonhara com o avô, dizendo-lhe que não temesse, ele estaria ao seu lado, dando-lhe coragem e força.
Dia do concurso, vestido em sua melhor roupa, Davi Emanuel foi enfrentar os seus concorrentes, todos com sanfonas modernas. A dele, acanhada, velha e trazendo ainda o cheiro do vô Dandan parecia instrumento tirado de um museu. Isso não lhe causava vergonha e medo, seu avô prometera acompanhá-lo durante a sua apresentação. Ele até sentia a presença do velho naquele ambiente.
Durante a sua audição os presentes ficaram maravilhados pelo som que saia daquele insignificante instrumento. De pé ele foi aplaudido. Ele sabia que o avô estava participando daquele momento e, por certo, estava orgulhoso do neto. Ao receber a premiação de sanfoneiro revelação, uma sanfona novinha em folha e moderna, Davi Emanuel sentiu a mão do avô a ajudá-lo a segurar o prêmio, mais pesado do que a sua Dandinha. Tempos depois ele estourou nas paradas de sucesso da rádio de sua cidade, com a mesma música que tocara no concurso. O animador de um programa musical da emissora havia gravado, em fita cassete, todas as músicas do festival e as colocavas em seus programas, seus ouvintes eram presenteados a cada dia com uma das músicas classificadas. A de Davi Emanuel passou a ser a mais solicitada, despertando a curiosidade de programadores da capital. Depois ele foi estudar acordeom, a convite, na Alemanha. Lá, se aperfeiçoou, voltou ao Brasil por duas vezes até fixar-se definitivamente na Europa, onde passou a realizar recitais em todo o continente. Do Brasil, ele se esqueceu de vez.