REFLEXÕES À LUZ DE UM COTOCO DE VELAS

Eu, insônia das sementes, neste quarto-quase-prisão, acompanhado de um cotoco de vela e de uns livros recendendo a traças, me habito e me cogito poeta. Dei umas lambidas nuns versos e depois desexpliquei-os, eu que me meto a córrego de ribeirinho. Tento desvestir-me de tédio delirando nuns verbos sem pejo, crônicas de almas nenhumas. Acendo estrelas nos meus delírios e sei que vento não sente dor nem emprenha a lua, o canto do silêncio é desafinado, mas insisto nas travessuras das palavras, num papel de embrulhar sabão. A roldo ponho-as resritmadas numa sessão de jazz, trompetes como trilha sonora de um ajuntamento de ideias e desconexões verbais; mas sou artista barroco, neo-linguista e pré-anunciação do caos, não me enrodilho em desacertos existenciais e coisas e tais. Do vazio me vem o coice da inspiração, mula no cio propondo coito com o bezerro de ouro nas montanhas do Sinai, pra despejar metalinguagens, sonetos assimétricos, parnasianismo e outras tronchuras libertinas e desliterárias.

O cotoco já deu sinais de sono, chama bêbada desalumiando-me as ideias amorfas; lépido tento coordenar o que resta de sobriedade; lembro os vestidos da mata, que na minha infância me enrodilharam de desejos, de sonhos e de peripécias ingênuas; lembro a sisudez das pedras, que eram corpos deslizantes para calangos e lagartixas e répteis venenosos; lembro o rumor das árvores, nas quais fui equilibrista e desmedroso de queda; lembro a prenhez das nuvens, quando paria as quedas dágua no corpo do sertão. Desbotei a razão quando me meti a versejador, porque dei de desamar os instantes e dar cocorotes nos momentos. Se lucidez há é das relembranças do que fui, do que vivi, do que presenciei. Não me escondi em luras e jamais fui esbórnia, que a desmiolice não me é amante, daí meu retraimento em ser artesão da deslinguagem. Em sarãs escondi-me de bandidos do velho oeste, em serões acho-me tentando violar um papel anárquico e resiliente, impróprio para maiores que se metem a poetar.

Das horas me esqueci, das madrugadas me apossei, o cotoco é quase cadáver, insisto nos restolhos das chamas e queimo as pestanas com o lumiar das estrelas restantes naquele céuzão de velho testamento, colorizado pelos néons e postes perpendiculares de uma civilização de améns desmiolados. Abranjo-me de ignorâncias e destalento, não liberto pássaros nem libretos de uma peça sazonal de atos isolados; liro a fome, a desesperança, a aridez, os sobressaltos, e pra quê? Se daquele papel em que exponho minhas loucuras sãs nada de proveito haverá, a não ser fustigar fogo de panelas vazias? Revolto-me por ser um artista sem articulações subalternas, de desvendar os esgotos das maxambetas e fazer parte da ror dos poetas publicados sob talento algum. Mas da revolta me vem o consolo de ser um out da contracultura, do bas-fond dos eleitos. Afinal, deles será o reino dos incompreendidos.

Tem um cachorro latindo as horas da manhã que brota das madrugadas abespinhadas, e essas minhas inequações mentais me deram um mondrongo de dor de cabeça insuportável. Há que soprar a chama do cotoco e me preparar para mais um dia de desmiolamentos e crises suburbanas.

Matuto Versejador
Enviado por Matuto Versejador em 18/08/2018
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