Mil anos em trinta segundos
Estávamos os dois há muitos metros do chão e nossos olhares não se desgrudavam, fazia mais de mil anos que estávamos ali nos agarrando um ao outro em uma tentativa falha de busca por segurança. Eu sentia que minhas unhas estavam tão enterradas em sua pele que a qualquer momento sentiria o sangue quente escorrer em meus dedos até coagular sobre minha pele, formando figuras grotescas que me lembrariam da morte. Olhei nossas mãos cruzadas e vi o vermelho vinho beijar minhas mãos. Eu o havia machucado.
O grito preso em nossas gargantas nos impedia de falar, não havia tempo. Mil anos que passaram em um minuto. O terror paralisava nossas expressões.
Seus olhos azuis pareciam crescer mais a cada instante, aparentando que a qualquer instante sairiam de órbita e espatifar-se-iam. A verdade era que literalmente isso iria acontecer. O vento gelado fazia com que minha pele se arrepiasse ao sentir o toque do seu manto de despedida me cobrir. Os últimos instantes lentamente passavam por nós.
- Eu te amo. – O homem que me agarrava tão temeroso gritou.
As lágrimas quentes cobriram meus olhos e o soluço se formou em minha garganta. Eu o amava? Não saberia dizer, mas a gratidão por sua companhia ali me fez responder que sim. Éramos tudo que tínhamos antes de encarar o imenso vazio. As palavras se atropelaram em minha língua, saindo quase como um grasnar de pássaro. Eu tinha tanto a dizer, mas o tempo era nosso inimigo, tinha nos roubado toda a possibilidade de dizer qualquer coisa. Um pensamento assombroso se formou em minha cabeça.
Você teve vinte e três anos para dizer o que quisesse.
Senti minhas calças ficarem molhadas. Era o fim. Eu havia me mijado. O cheiro fétido da urina tocando minha pele recém-depilada estranhamente me confortou. Ao final de tudo, naquele infinito angustiante entre os segundos que me restavam e a lentidão com que tudo parecia acontecer, eu era apenas um ser humano com medo. Todo meu dinheiro e poder conquistado a tanto custo me pareceram uma grande idiotice. Uma piada sem graça contada em uma roda de amigos. Eu era uma piada. Uma piada mijada.
Não havia julgamento no olhar de Felipe. Ele me apertava ainda mais contra si. Sangue, suor, medo e urina misturados em nós dois. Nossa relação nunca havia sido mais do que sexo e poder. Agora estávamos unidos em algo que pela primeira vez era real. A morte. O fim comum de toda a humanidade.
Senti meu próprio sangue em meus braços e vi o medo em seu olhar. Tinha certeza que era a cópia exata da minha própria expressão. Me conformei. Não poderíamos fazer nada quanto ao nosso fim. Nada que tivéssemos ou nossos contatos impediriam a força da gravidade agir contra nós.
O chão, a cada instante, se aproximava mais, a velocidade em que estávamos caindo, era extraordinária, só que a cada segundi o tempo parecia passar mais devagar.
Em meus últimos segundos senti minha última respiração. Apreciei cada detalhe.
O ar passando pelas narinas, inflando o peito, a sensação de preenchimento e de minha caixa torácica expandida, e finalmente, o oxigênio deixando meus pulmões. Uma última grande inspiração.
Senti meu coração bater suas últimas canções palpitantes.
Setenta batimentos por segundo. Ou seriam cento e vinte? Não consegui contar.
Senti o calor das mãos de Felipe ao meu redor. Senti seu odor amargo em minhas narinas, senti que o amava. Ouvi suas batidas estrondosas. Ouvi até seus pensamentos. Eu o amei, mesmo que, só por alguns segundos.
Ouvi o canto dos pássaros que esfregavam em nossas caras sua habilidade de voar. Ouvi o barulho de sirenes ao longe. Ouvi a coisa mais assustadora de todas. Meu coração que gritava incessantemente:
- Você viveu mais nesses poucos segundos em que está morrendo do que em toda sua vida.
E enfim, não vi, não ouvi e não senti mais nada. A grande escuridão. O eterno silêncio.
A queda tinha durado, ao todo, apenas um minuto. Felipe faleceu primeiro. Uma morte rápida e limpa. Já eu, tive de brinde alguns minutos de dores excruciantes em todas as partes do corpo. Pedi ajuda a quem quer que me protegesse e por fim, agradeci pelos eternos trinta segundos de vida que tive. Finalmente, a morte beijou-me lentamente nos lábios.