O pistoleiro e o datilógrafo
Antônio chegou montado a cavalo.
Coluna reta. Chapéu sobre a cabeça. Vestido como um típico capataz. Abaixo do espesso bigode mastigava um palito.
Ao estar de frente ao tabelião apeou e só então notou que haviam retirado o travessão onde amarrava os bichos. Com um olhar resignado retirou o chapéu e calmamente coçou a cabeça suada enquanto tateava a rua com o olhar buscando onde deixar o cavalo do patrão. Optou por prendê-lo a uma janela gradeada e entrou no estabelecimento.
O tabelionato estava cheio.
Três rapazes bem vestidos atendiam as pessoas por trás de um longo balcão de cor escura. Ele se encaminhou diretamente a um deles. Este explicava energicamente a um senhor gordo quais documentos faltavam num maço de papeis a frente deles. Sem esperar chamou-lhe:
- mocinho, vim buscar a documentação do coronel Osório. Ele disse...
- um momento – interrompeu-o o rapaz levantando cordialmente uma das mãos. O velho continuava a remexer os papeis enquanto tagarelava – deixe-me só terminar com ele, sim?
- sabe quem é o coronel...
- Sim, eu sei quem é o coronel Osório. Todos sabem. A documentação sobre as terras estão prontas senhor, mas antes de entrega-la devo me certificar que não há qualquer erro. Dê-me apenas um instante que irei fazê-lo, sim?
Antônio pôde sentir o desprezo por trás daquelas palavras educadas. Assim como era evidente o desrespeito com a figura do seu chefe. Não era a primeira vez que era tratado daquela maneira. Apenas assentiu e virou-se pretendendo esperar na porta.
Lá fora o dia estava quente, porém fresco, mas ali dentro estava abafado e o barulho das pessoas conversando parecia dobrar unindo-se ao outro som... de peças metálicas chocando-se. Parou a meio caminho da saída e virou-se. A fonte do som estava a sua esquerda: Um rapaz sentado de costas, debruçado sobre uma mesa. Hora ou outra o som pausava e ouvia-se algo deslizando seguido de um estalido e então o tec tec retomava enchendo o ambiente. Ele caminhou até lá.
Compenetrado, o rapaz que não devia ter mais de dezoito anos e nenhum pelo no rosto mal o notou. Digitava sem parar numa daquelas máquinas de datilografar. Os dedos se transformavam em borrões indo de um botão a outro. A folha de papel ia ganhando formas minúsculas enquanto subia lentamente num movimento quase hipnótico.
Antônio se demorou assistindo aquilo e esqueceu-se da irritação de instantes atrás e até do barulho e do calor infernal naquele lugar. A folha chegou à extremidade da máquina e o jovem alongou os braços flexionando os dedos.
Por fim o notou ali atrás e lhe cumprimentou num tímido balanço de cabeça.
- dia – respondeu ele num sorriso um tanto disfarçado.
- está precisando de algo senhor? – perguntou o datilógrafo.
- estou aguardando o seu amigo ali, ele está... Perdoe. qual sua graça? – perguntou aproximando-se.
- eu não entendi.
- sua graça, seu nome. Como você se chama?
- ah sim, Tomás, senhor. Se me der licença...
- você tem dedos muito rápidos Tomás. Já lhe falaram isso?
- bem... – claramente desconcertado diante do estranho elogio – obrigado, agora se não se imp...
- se tivesse nascido uns trinta, quarenta anos atrás eles lhe seriam de muita serventia. É preciso ter dedos rápidos para cumprir algumas ordens, sabe?
- como assim? Que tipo de serventia?
Antônio sorriu. Havia malícia nos seus olhos e no sorriso que se escondia abaixo do bigode. O palito correu de um lado a outro da boca. Levantou o cinto puxando pelos polegares e levantou um pouco a camisa grosseira deixando a mostra o cabo de madeira curvo de um revólver. O cano escondia-se por dentro da calça.
- você é... Um assaltante? – os olhos arregalaram-se – Olha. Nós nem temos dinheiro...
- hei! – repreendeu – me respeite. Sou um vigilante do Coronel Osório. Claro que faço outros serviços com esse brinquedinho aqui também. Mas não roubo. Bandido qualquer um pode ser. Até com pedaço de pau na mão fingindo ser uma carabina dá pra se tornar um. Mas pra fazer o que faço é preciso ser homem honrado e ter dedos rápidos. E também ter olhos rápidos, pensamento rápido. Você Tomás, olhando bem só tem rapidez nos dedos mesmo...
Sem esperar reação deu um salto para frente fingindo que sacaria a arma movendo a mão rapidamente. Tomás se encolheu tremendo. Ninguém por perto pareceu notar. Estavam muito ocupados uns com os outros, com suas posses e escrituras, suas papeladas e com suas conversas tediosas a serem postas em dia. Ele poderia facilmente sacar o dragão ali e derrubar todos um por um antes que se dessem conta do que estava havendo.
O homem riu com gosto da cena e já se afastava para a porta quando o outro atendente o chamou. Ele tocou no ombro de Tomás e buscando consolá-lo lhe disse:
- fique sossegado mocinho. Foi só uma brincadeira, sabe bem disso. – percebeu que ele tremia um pouco.
- sim, sei... – respondeu Tomás se livrando educadamente de seu toque e voltando a ocupar-se com a máquina de datilografar.
Seguiu até o balcão e apanhou os documentos metidos dentro de um envelope pardo sentindo novamente aquela insegurança sob o olhar do rapaz que ia dele para Tomás. Parecia notar algo errado, mas tudo que disse foi:
- está tudo aí.
- agradecido – retirou-se.
* * *
Estar do lado de fora trouxe uma sensação de vitalidade novamente.
O sufocamento e os olhares de desprezo ficaram lá atrás juntos aquela gente barulhenta. Caminhou até o cavalo quando notou dois homens fardados desamarrando o animal. Um terceiro, metido em um paletó marrom assistia a cena enquanto gesticulava nervoso. A polícia. O delegado. Diminuiu o passo não compreendendo o que se passava e foi surpreendido pelo sujeito de paletó quando já estava bem próximo.
- o animal é seu senhor?
- é do meu patrão. O coronel...
- e acha que minha janela é um travessão para amarrar seu bicho ou de quem quer que seja? Ele cagou tudo ao redor, olha essa sujeira!
E de fato, havia montes de fezes espalhadas ao redor do animal. O cheiro era insuportável para aquela gente. Ele por outro lado mal sentia tão acostumado estava com a vida na fazenda desde moleque.
Os guardas terminaram de desamarrar o animal e jogaram a corda que Antônio apanhou ainda no ar.
- leve ele logo daqui! Ou o faço limpar tudo e ainda o prendo por desordem publica e por emporcalhar a rua. Meu deus olha essa sujeira...
Sem dizer nenhuma palavra ele montou e afastou-se.
Sentiu um calor subindo-lhe pelo estômago. Uma mistura de palavras não engolidas, fúria e o café da manhã mal digerido. Respirou fundo sentindo o peso morto da arma na cintura. A rigidez do cavalo por entre suas pernas. O palito indo de um lado a outro da boca. Tempos bons em que homens como ele eram respeitados como verdadeiras autoridades; homens com colhão que não se desesperavam por um pouco de bosta de cavalo no caminho nem ganhavam a vida levantando canetas e papéis, mas sim pás pesadas com terra e carabinas carregadas. Homens duros forjados no calor do sol, na poeira, sob a terra dura. Os tempos eram outros agora, brandos, e o que se via era uma geração de moleques fracos e medíocres.
Enquanto subia a rua em trote lento mal notou que só ele montava a cavalo em meio a um caos de gente e veículos de aço. Os tempos de fato eram outros.