Conte-me seu segredo

Todas as noites ouvia passos no corredor. Sempre nas horas tardas, aquele barulho de quem chega de algum lugar, com a história de mais um dia vivido, entre os carros e as pessoas que caminham nas ruas movimentadas das grandes cidades. Imensas cidades que crescem todo dia um pouco mais e fabricam ideias e pensamentos; e corroem o mundo com seus frios enfeites, suas torpes qualidades, sua nobre decadência... num consumismo sem fim e sem propósito.

Alguém que vinha de algum lugar, chegava sempre àquela hora da noite; fazia um barulho frio, como se não quisesse incomodar, como se quisesse apenas chegar e dormir; dormir para tudo, principalmente para os ruídos do mundo, para as enfermidades da vida, para a dor de todos os olhares com os quais cruzara durante aquele dia interminável.

Ele ficava ali esperando todas as noites, enquanto não ouvia aqueles passos pelo corredor, não conseguia dormir. Era uma espécie de promessa que sua consciência havia feito para o seu organismo e que, por mais que quisesse quebrar, não conseguia. Fechava os olhos, contava carneirinhos, numa rememoração da infância, mas não conseguia pegar no sono enquanto aqueles passos silenciosos não chegavam; o sono não vinha e a noite se ia numa melodia calma e triste, como o toque de um velho violão, que insiste em tocar a mesma música dos tempos em que as pessoas se calavam para ouvir, experimentando o gosto saboroso dos últimos momentos, mesmo que tudo estivesse apenas começando.

Naquelas horas nem mesmo sua própria vida tinha importância. O dia que passara, num eterno ir e vir sem rumo e sem sentido. As guerras, as lutas por melhores salários, as políticas assistenciais, a corrupção, o trânsito, as discussões sem fim sobre temas desimportantes e ocasionais. Tudo o que lhe importava naquele momento eram aqueles humildes passos que vinham altas horas de dentro da imensa e indefinível cidade. Seus erros irremediáveis, sua parada cardíaca, seu amor desfeito, seu insistente silêncio, seus olhos sempre olhando para o nada, em busca de reconhecer suas próprias ilusões e entender seus medos mais reais; tudo se perdia ante a expectativa de quem chegava no meio da noite, como o silêncio da morte, ou o ruído da mesma morte, certa e inevitável.

Há tempos se perguntava de quem seriam aqueles passos que a noite trazia até seu quarto, até seus ouvidos atentos, até seu silêncio inquieto; e que, de tanto esperá-los, já não sabia se queria ouvi-los uma vez mais. Não tinha certeza, mas sonhava que era uma mulher de longos cabelos negros, com olhos meio tristes, mas de uma luz intensa; sonhava que ela quase nunca sorria, mas quando o fazia, deixava uma certeza no ar, quem visse aquele momento, deixava o ceticismo de lado e passava a acreditar nas melhores possibilidades da vida; Deus nascia naquele instante para as pessoas incrédulas. Sonhava que era assim, descobriria algum dia quem era aquela pessoa misteriosa? Talvez não houvesse mistério algum naquilo tudo, talvez fosse apenas alguém que trabalhava muito e precisava chegar mais tarde.

A noite percorria seus olhos como um animal feroz percorre as savanas africanas em busca da caça desejada. O tempo brilhava como flashes numa escuridão familiar, como os sonhos coletivos, que, geralmente, não se realizam por falta de todos ao mesmo tempo, ou por excesso de palavras e ausência de atitudes. Lembrava de coisas passadas, coisas que o tempo consome sem pressa e, pensava, que algumas lembranças vão se esquecendo da gente e essas são sempre nossos melhores momentos.

Resolveu deitar, mas lembrou que não tinha nome, só um sussurro que saía, às vezes, da boca de alguns companheiros de trabalho; que, na verdade, era apenas um apelido que trouxera da infância, do tempo em que as pessoas o olhavam, mas não o viam, apenas imaginavam sua existência, num ecumenismo de todas as necessidades humanas.

Em alguns momentos, não sabia mesmo de onde tinha vindo. Se não era mais um daqueles retirantes, que buscam vida mais fácil em outro lugar. Poderia ser, embora não lembrasse quanto tempo havia passado desde a última vez que tinha visto um rosto conhecido. Dentro do quarto, velhos retratos traziam à tona uma recordação desconfortável, porque não parecia ser deste mundo, mas de outro que já não existia.

De tanto estar ali, já não tinha noção de que lugar era aquele. Em que cidade realmente vivia. Se era apenas um sonho, que nunca havia começado e nunca terminaria. Todos aqueles instantes, passados e futuros, eram somente os resquícios de sua perdida memória, quando as coisas tinham mais sentido e menos importância. Sabia que sua vida sempre fora um filme ruim, dirigido por um fraco diretor, estrelado por um ator pior ainda; sabia, mas não podia fugir. Assim como não poderia fugir da verdade. Aqueles passos, no meio da noite, poderiam ser apenas em sua cabeça. Frutos de sua louca solidão.

Sons o fazem despertar, ela já vem, se aproxima com seus longos cabelos negros e seus olhos tristes, cansada de mais um dia interminável. Ela já vem, sua alma.

João Barros
Enviado por João Barros em 15/08/2018
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