Conto das terças-feiras - A casa ou a vida

Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE. 14 de agosto de 2018

Conheci o casal Arilene e José Firmino, o Zeca de Arilene quando participava, como padrinho, do primeiro aniversário do filho de um carpinteiro que fizera um trabalho em meu apartamento. O casal residia no mesmo condomínio da festa proporcionada pelo carpinteiro.

Zeca de Arilene, nos seus simpáticos 68 anos, conversava pelos cotovelos, como se diz por aqui, daí porque desfiava, rapidamente, sua singela vida, com todos os pormenores, não deixando brecha alguma para que eu lhe fizesse perguntas. Contou-me ele que estava muito feliz, havia recebido sua casa do programa “Minha Casa minha vida”, lançado em 7 de julho 2009, por meio da Lei Federal nº 11.977.

— O meu maior sonho era ter casa própria. Um dia alguém me falou que “tudo é precioso para aquele que foi, por muito tempo, privado de tudo”. Fiquei com isso na cabeça e fiz promessa que um dia eu e minha mulher seríamos felizes em nossa casa própria.

Pedi a palavra para explicar-lhe quem, na verdade, era o dono da frase que ele acabara de citar:

— Quem disse a frase que o senhor acabou de proferir foi Friedrich Nietzsche, um filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano do século XIX, nascido na atual Alemanha, em 1844 e falecido em 1900. Por certo foi algum professor que a reproduziu para o senhor, completei.

Zeca de Arilene olhou para mim e balançou a cabeça como sinal de concordância, embora eu notasse que o que eu lhe dissera pouco o importava.

Bastante emocionado e já deixando as primeiras lágrimas escorrerem pela face enrugada pela fadiga da vida que levava, ele prosseguiu:

— Da janela de nossa casa enxergamos no horizonte um futuro melhor, agora temos um teto que protege o nosso sono tranquilo, um chão verdadeiramente nosso. Nunca mais seremos enxotados de moradias de péssima qualidade por falta de pagamento. Nela guardamos os objetos que recebemos de pessoas caridosas, que deram um ar aconchegante à nossa moradia. Aos poucos ela está se transformando em um lugar para a gente ser feliz, coisa que não conhecíamos.

Com voz trêmula e olhos molhados ele continuava o seu relato:

— Saí de casa aos treze anos, não suportava ver meu pai, alcoólatra, bater em minha mãe e em meus irmãos menores, além de apanhar muito porque negava repassar para ele o dinheiro que ganhava na feira, ajudando alguns feirantes a armar e desarmar suas barracas. Escondido de meu pai eu entregava todo o dinheiro que recebia à minha mãe para comprar comida. Quando eu nada ganhava, não tinha comida em casa.

— Morei na rua por vários anos, não estudei, só aprendi a ler e a assinar o meu nome. Conheci Arilene quando fiz vinte anos, ela também morava na rua e é apenas três anos mais nova que eu, a gente catava panela velha e outros objetos de alumínio, cobre e ferro para vender, apurávamos pouco dinheiro. Tivemos um filho, mas, infelizmente ou felizmente, ele morreu durante o parto que aconteceu na rua em noite de chuva. Arilene então ficou impossibilitada de ter outro filho.

Arilene interveio para dizer que eles passaram fome e frio e, algumas vezes, foram enxotados pela polícia quando dormiam na praça.

— A gente tinha que mudar de praça todas as noites. A gente carregava nossas coisas em um carrinho de supermercado que achamos no lixo. O Zeca achou uma lata com tinta, pintou o carrinho que ficou muito bonito. Foi a primeira coisa que a gente teve que era realmente nossa. O problema era onde guardar. Então eu dormia um pouco e o Zeca vigiava. Depois eu acordava e ele dormia. Nunca brigamos, acho que erámos felizes.

Agoniado, Zeca esperneava na cadeira, ele queria continuar contando a história deles. Ficava impaciente porque Arilene não parava de falar. Não aguentando mais, ele tomou a palavra, e continuou seu relato:

— Um dia paramos em uma casa para perguntar se não tinha panela velha. A senhora que abriu a porta olhou para Arilene e perguntou:

— Você sabe lavar roupa? Sabe cozinhar? Arrumar casa?

Ela, acabrunhada, respondeu:

— Não sei fazer nada disso não, senhora. Mas posso aprender, já estou cansada desta vida de morar na rua e catar coisas para vender. Meu Zeca também tá cansado, estamos ficando velho e sem forças para trabalhar. A senhora vai dar um emprego para a gente?

— A senhora, comovida com a sinceridade de Arilene, disse Zeca, — resolveu empregar a gente; ela para trabalhar na casa e eu para cuidar do jardim e lavar o carro do patrão. Era uma casa grande, mesmo assim aceitamos. Com o salário alugamos a nossa primeira morada, uma casa caindo aos pedaços e longe. A patroa pagava também o transporte da gente. Trabalhamos por trinta e cinco anos na casa dessa bondosa família, de carteira assinada e tudo. Quando completamos sessenta e cinco anos, pedimos nossas aposentadorias. Hoje, recebemos dois salários mínimos. Naquele tempo, a gente era feliz, mas faltava algo, uma casa do nosso jeito, só nossa.

— O que vocês fizeram para conseguir essa casa, perguntei?

— A senhora que deu emprego para a gente fez o nosso cadastro no Programa Habitacional do Governo, esperamos um bocado. A gente foi bem avaliado e, na distribuição, ganhamos ela no sorteio, é pequena, tem área de 46m², divididos em dois quartos, banheiro, sala, cozinha e área de serviço.

Hoje, seis meses depois de ter conversado com o casal Arilene e José Firmino, em reportagem de um jornal local, tomei conhecimento que o casal fora expulso por traficantes de uma facção criminosa. Eles foram ordenados pelos bandidos a irem embora apenas com a roupa do corpo. Os dois receberam ameaça de morte se não cumprissem o que lhes foi ordenado. Até o fechamento da reportagem não se tinha notícia do paradeiro do casal e se os traficantes haviam sido expulsos da casa roubada e presos.

É o caso de se perguntar: “tudo é precioso para aquele que foi, por muito tempo, privado de tudo”, até tomarem tudo?

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 14/08/2018
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