O CREPÚSCULO DA DEUSA

"Eu não sou boa nem quero sê-lo, contento-me em desprezar quase todos, odiar alguns, estimar raros e amar um."

Florbela Espanca

Desde muito nova que Edite Vasconcelos sonhara em ser atriz. Na escola entrava sempre em clubes de representação, depois figurou em algumas companhias amadoras, foi subindo gradualmente em termos de popularidade.

Alguns anos mais tarde tentou o cinema, mas sem grande sucesso.

Regressou aos palcos, a sua grande paixão, e na meia-idade veio a estabelecer-se na companhia de teatro de Ludovico Smith, americano endinheirado, nome sonante e por demais prestigiado no meio.

No teatro do americano, chamado de Marvila, Edite ganhou fama e prestígio anos a fio, através da sua atuação segura em várias peças, algumas chegando a estar meses em cena. Era "um animal de palco", como os críticos lhe chamavam. Habituou-se a viver num mundo de fantasia e glamour, acarinhada pela multidão de fans que todas as noites enchia o teatro, nomeadamente para vê-la em soberbas representações de Hedda Gabler, um drama passional de Henrik Ibsen e que ela protagonizou.

Apesar de conservar ainda alguns traços de beleza, a idade já ia deixando as suas marcas. Daí que se maquilhava com algum exagero, querendo à força parecer vistosa, recuperar a juventude.

Por devaneio, Edite tomou-se de amores por alguém mais novo. O alvo da sua paixão foi um jovem e ambicioso ator, Eurico Malta. Ficou por ele totalmente embeiçada e o êxito e a fama possibilitaram que o apoiasse e sustentasse num ambiente de luxo que ele nunca havia sonhado. Roupa, jantares caros, dinheiro para gastar sem controle, tudo surgia nas mãos de Eurico, como se existisse uma milagrosa fonte de fortuna.

Ludovico, que por Edite vivia há anos uma discreta mas evidente paixão, gastava dinheiro de forma descontrolada, promovendo a representação e assim vendo feliz a sua amada. Sabia que não tinha chance de concorrer com o outro pela frescura da juventude e por isso calou o seu desgosto e frustração; e assim, nesse mundo artificial, amores para um lado, indiferença para o outro, os três lá foram vivendo.

No entanto tudo é efémero, sobretudo a fama e após alguns meses de representação de Hedda Gabler a assistência ao espetáculo naturalmente decresceu. Ludovico logo cuidou de arranjar um argumento de autor conhecido e onde Edite pudesse continuar a brilhar. Ela punha sempre como condição que Eurico também figurasse no cast e o produtor percorreu todos os gabinetes de argumentistas conhecidos para corresponder aos seus desejos.

Eurico era jovem calculista e irresponsável, para ele Edite representava apenas um caminho para o dinheiro fácil e uma vida de fausto. Imaturo, tomou-se de amores por uma jovem atriz estreante na nova peça, uma simples figurante que lhe correspondeu aos afetos. Tornaram-se amantes fogosos e descarados, disso fazendo alarde.

Edite demorou a constatar a realidade, mas quando soube que Eurico apenas se aproveitava dela, sem a respeitar, primeiro chorou de desgosto na solidão da sua casa e depois reagiu, fez com que Ludovico despedisse o seu amante e a jovem amada.

Rebentou o escândalo, até porque o casalinho fez alarde em mergulhar Edite num mundo de lama.

Desgostosa com a situação, insustentável no teatro, Edite mergulhou na bebida, não raras vezes compareceu ébria aos ensaios e representações e criou grande mal-estar entre os membros da companhia. As coisas complicaram-se ainda mais com os seus acessos de mau feitio, partindo copos e adereços no camarim.

Assoberbado de dívidas, Ludovico percebeu que Edite se estava a afundar e tentou dar-lhe apoio psicológico através dos melhores médicos, mas ela tudo rejeitou. Deixou de comer, afogando o seu desgosto no whisky.

Um dia, bêbada, ela caiu desamparada no palco e fraturou o crânio. Carinhosamente, Ludovico levou-a ao hospital, desesperado com o seu estado de saúde.

Entretanto a peça foi suspensa e o produtor tombou na ruína mais desesperante. Deixou de ir ao hospital e depois soube-se que se tinha suicidado com um tiro na cabeça.

Por falta de suporte financeiro - já não existia quem lhe pagasse as contas e Edite também não acautelara o futuro, gastando com o amante tudo o que ganhava - foi admitida por caridade no Lar do Artista, onde viveu alguns meses definhando progressivamente. No entanto, até ao fim, persistiu em usar um batom forte, a sua imagem de marca.

Acabou por falecer no anonimato.

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 09/08/2018
Reeditado em 12/08/2018
Código do texto: T6414253
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