Vicissitudes, virtudes, amplitudes e vidas rudes

Água ferve devagar, chegando perto chego a sentir o calor irradiado pela chama azul correr pelo copo de metal como cachorro que vai ao parque. Moléculas vibram, criam calor, esse calor transfere-se para outro corpo e assim se segue a vida. Depois do borbulhar, desligo o fogão, viro o líquido efervescente numa xícara barata e então vem o sachê de chá. Numa monotonia agitada vejo as cores dançarem ao sabor do movimento leve da água, colorindo-a com leves tonalidades de caramelo – quase como a pele daquele moço, eu diria. O conteúdo aos poucos se mistura e o líquido outrora classificado como insípido, inodoro e incolor corrompe-se com os prazeres das ervas que em terras brasileiras imperam e ganha a vida que, por fim, presenteia o paladar.

Olho o pó dissolver e enfim percebo que não sou diferente. Ele fica contido no pequeno e fino envelope de papel; anseia por ser livre, o menor sopro é o suficiente para fazê-lo flutuar e voar para infindáveis destinos, contudo lá está ele contido no pequeno e fino leve envelope, barreira a cercá-lo com tal agressividade que tira dele o poder de voar, contudo o desejo de liberdade também é acompanhado de algo, de um desejo vigoroso de encontrar-se e ser uno e por isso une-se fácil, fácil ao que é líquido e escorrega fácil, formando, assim, uma mistura única e quente que satisfaz tanta gente e de vez em quando até se satisfaz. No fim das contas, existem mesmo dois desejos totalmente separados: ser liberdade e estar com outrem? Quem garante que um não está subordinado ao outro? Se quero voar, preciso ser completo, não posso ter apenas asas sem corpo ou corpo sem asas ou corpo e asas sem cabeça, é necessário haver totalidade e temo apenas encontrar tal completude num outro corpo – que tenha asas ou não – e o isso me abisma, porque se escravizo-me por tal necessidade sou duplamente não-livre e uma vez que a sacie, ainda assim serei não-livre – dessa vez não, duplamente, mas, ainda assim, unicamente – uma vez que agora estarei acorrentado não por um envelope, por correntes, por angústia ou por preguiça e sim por gostar sozinho e jamais ser capaz de pra longe flutuar.

Outra colher de açúcar, o chá de fato está um tanto insosso, café teria sido melhor, tem sabor e força tão superiores, sem falar que tomar chá soa tão anglófono. Ugh, como odeio os anglófonos, prefiro os agradáveis representantes das línguas latinas. Portugueses, brasileiros, angolanos, franceses, marroquinos, senegaleses, italianos, espanhóis, argentinos, América Latina, África Francófona – Françafrique -, ilhas do Pacífico, ilhas do Caribe… Devo usar outro sachê e mostrar aos ingleses como é que se faz? Vejo a fina camada alva e doce através do vidro da xícara e com uma colher misturo o fundo e vejo cada grão de açúcar se balançar selvagem no turbilhão de água cor de caramelo, movimentos belos que se repetem. Heráclito de Éfeso costumava dizer algo sobre um mundo em perpétuo movimento, especialmente considerando-se que a vida está sempre mudando e que assim “nenhum homem atravessa o mesmo rio duas vezes”. É perfeitamente compreensível os motivos de assim ele ver o mundo, ele até foi chamado por alguns de “O Filósofo Chorão” - quanta consideração, não?

A cada novo movimento da vida eu me desfaço um pouco como açúcar naquele chá… Dissolvo-me, dissolvo-me, regrido, mudo de estado, uno-me e desuno-me com o contexto que agora me define num ciclo sem fim que serve apenas para desestabilizar minha alma bem quando penso que enfim repouso sobre terra firme depois de tanto me dissolver no balançar maldito. São pedaços de individualidade que ficam perdidos ao longo do caminho que não retornam e se retornam, só os consigo mesmo se na carne viva os costuro de volta até o corpo deixar de rejeitá-los: é uma frase escrita diferente, é uma palavra no ouvido sussurrada com outra entonação, é uma angústia que antes jamais aqui passava e que hoje se instala como se fosse anfitriã. Não entendo, parece que alguém me roubou e me trocou, pouco a pouco levou pedaços tão mínimos que não notei e substituía a carne pulsante por terra fofa, fraca e maleável, até tirar-me de mim e trocar o que sou por um serei e assim restou uma réplica exata, com mesmo rosto, mesma voz, talvez mesmos pensamentos em um ou outro momento, mas fundamentalmente diferente no que sentir e como sentir, diferente até mesmo na alma. Sim, na alma, afinal, apenas um corpo vivo tem alma e não uma reles estrutura de terra tão facilmente moldada pelo movimentar incessante do destino que o tempo todo nos esbofeteia sem nos deixar revidar. Vida, destino, alegria, melancolia, não passam de um bando de megeras amargas. São aquelas senhoras ricas irritantes que não conseguem parar de pensar nos bons momentos de compras na Champs-Elysée, no saudosismo pelo tempo da exploração da doméstica que não tinha salário mínimo e nem décimo terceiro. O chá esfriou, as moléculas então pararam de se mover e agora o gosto, como tudo mais, está arruinado.

Ando um pouco pela cozinha, xícara ainda gélida e por fim jogo todo o líquido nojento na pia e vejo-o lentamente escorrer como se fosse a coisa mais interessante do mundo, depois coloco mais água para ferver e vou pegar outro sachê. Ai que pena que nada que realmente importa pode simplesmente descer pelo ralo e depois ser preparado de novo, tudo que importa altera-nos de maneiras tão permanente que certamente Heráclito estava certo, mesmo uma experiência aparentemente irrelevante pode mudar uma pequena parte que tem que ser aceita pela alma que, por sua vez, para não se ver rejeitando uma parte outrora sua agora diferente, também se muda e se adapta para acomodar o novo. Todo o sistema altera-se por causa de uma pequena modificação imperceptível numa parte que não recebe nenhuma atenção.

Eu estava lendo sobre neuroplasticidade, diria que é um conceito que cai bem nas pessoas, quase tanto quanto uma luva elegante, talvez até mais. Neuroplasticidade, aliás, neuroplasticité soa tão bem… Ah sim, o cérebro, diante de alguma modificação, de alguma inconstância, altera sua estrutura de modo a lidar efetivamente com a novidade, realocando atividades, funções, atividades sinápticas e talvez até genomas e depois dessa adaptação, ele mantém o que alterou em si mesmo. A mudança causada no cérebro por uma mudança no ambiente é eterna, portanto cada experiência verdadeiramente me muda, não é somente uma frase cliché, mas quão frustrante é isso? Em ordem de se mover, de alterar as coisas, é necessário que um agente externo seja o responsável e nos estimule. Por qual razão não posso eu mesmo, por conta própria, aprimorar-me e virar algo além? Se uma pessoa para, as células do cérebro atrofiam, perdem-se pra sempre…

Que destino injusto que hoje sem remorsos eu desgraço, ele nos espanca com as decepções e as frustrações que atira-nos aos montes e não podemos nem sequer parar para descansar. Não mesmo, nada de se sentar sob uma palmeira num dia de Sol… E ver o mar então? Hahaha, que tolice, por isso é de Minas mesmo gostando tanto. Vai gostar, mas, mesmo assim, vai se amargurar por aquilo que não tem. Quando paramos, coisas ruins acontecem. “Atrofiamos”, “perdemos o jeito”, “regredimos”. E se decidimos seguir nossa natureza aparentemente dinâmica, se nos entregamos, se caímos de cabeça na vida que tantas vezes muda e nos humilha, podemos até continuar com nossas malditas células – é o que chamam de manter-se ativo –, no entanto existimos numa forma diferente que por mais semelhanças que compartilhe com o que era instantes atrás, encontra-se eternamente modificada por uma experiência talvez ridícula que tão embora queiramos esquecer deixa uma marca invisível da qual não podemos nos livrar jamais. Como sei que sou eu? O que sustenta minha identidade? Olho para mim há seis meses, deixei uma parte minha naquele tempo. Olho para mim há um ano, deixei uma parte maior lá. Olho para o que era há dois anos, percebo que deixei tudo lá e nada trouxe para o hoje.

Ah, que estranho, se no tempo eu pudesse voltar, não me reconheceria e talvez até me enojaria, por isso eu agora questiono o que faz do eu de agora e do eu do passado uma única entidade… Por mais que nossos corpos sejam iguais, a mente e a alma efetivamente transformaram-se, passaram por metamorfose completa, portanto se dizem que imago e lagarta não são a mesma coisa, por qual motivo seria o eu e o eu um mesmo algo?